Nicolas Cage e Nicholas Hoult em cena de Renfield (Reprodução)

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Crítica

Renfield é tudo que um filme popular pode ser de bom: curto, estiloso e sincero

Nicolas Cage mistura Bela Lugosi com Keith Richards em seu divertido Drácula

27.04.2023, às 13H55.
Atualizada em 28.04.2023, ÀS 11H00

Seria fácil para Renfield: Dando Sangue Pelo Chefe - até por seu esperto subtítulo nacional - se render a uma sátira cínica da cultura das start-ups, das “vagas arrombadas”, do “vestir a camisa da empresa” e do “aqui somos todos família”. A ideia é interessante, ressignificando a relação de Drácula (Nicolas Cage) e Renfield (Nicholas Hoult) sob a ótica do abuso psicológico que faz parte das relações de trabalho deterioradas da atualidade, e sem dúvida renderia ao filme a simpatia dos críticos que gostam de se sentir “por dentro” da metáfora da vez. O que Renfield de fato faz, no entanto, é muito melhor.

No roteiro de Ryan Ridley (Rick and Morty), trabalhando a partir de um conceito de Robert Kirkman (The Walking Dead), Renfield até fala de Drácula em termos profissionais - mas a impressão distinta que fica nesses diálogos é que chamar o rei dos vampiros de “chefe” é um eufemismo como aquele que os historiadores usam para se referir a dois homens ou duas mulheres que eram “apenas bons amigos”. Não que a implicação seja necessariamente sexual, mas Renfield trabalha com a ideia (se você pensar bem, inteiramente natural) de que esta dupla de mestre e servo que atravessa milênios lado a lado construiu uma ligação afetiva um pouco mais do que meramente profissional.

Daí que o filme trafega muito mais nos chavões do relacionamento abusivo do que da precarização capitalista, e ganha muitos pontos de sinceridade por isso. Sem negar a necessária simplificação de conceitos psicológicos complexos para que eles caibam em um filme de 1h30, Renfield busca se aproximar da questão do trauma com bom humor, mas sem escárnio - a ideia é literalizar uma luta de libertação psicológica que milhões de pessoas travam todos os dias, prover não um guia profissional completo para lidar com o abuso, mas sim uma ferramenta de identificação pessoal para aqueles que já passaram ou viram alguém passar por ele. Enfim, fazer o que o cinema faz de melhor.

Para chegar lá, o filme trata as tímidas tentativas de afirmação pessoal de Renfield como atos heróicos, caracteriza a sua inaptidão para lidar com o mundo fora da lógica torta de sua relação com Drácula como sobre-correções adoráveis, e coloca na boca de Cage muitas das frases e sentimentos típicos da manipulação abusiva. É uma aula de como compactar pesquisa claramente bem embasada e aprofundada no formato de uma narrativa vendável, sem sacrificar o entretenimento e a agilidade de sua produção. E também é um exemplo de como incluir texto socialmente relevante numa comédia popular sem lançar mão de recursos de narrativa batidos, baseados na ideia boba de que o público precisa de uma visão de fora para empatizar com uma jornada que desconhece.

Claro que todo esse esforço passa pelo filtro das escolhas do diretor Chris McKay (LEGO Batman) e sua equipe, a começar pela escalação de Hoult e Cage nos papéis principais. O ator de Mad Max e O Menu se arma de toda uma carreira interpretando homens patéticos que descontam sua raiva no mundo para viver um Renfield que busca, acima de tudo, não se tornar a mesmíssima coisa. A linguagem corporal hesitante e o atleticismo desajeitado nas cenas de ação são parte disso, mas o trunfo de Hoult é mesmo a forma como ele cava espaço no texto para expressar o julgamento de valor duro que Renfield impõe a si mesmo, o esfarelamento da ambiguidade de uma vida humana diante dos absolutos que Drácula tenta vender a seu servo, porque são esses absolutos que o mantêm sob o domínio do vampiro.

O outro lado da moeda é um Nicolas Cage que será - merecidamente! - celebrado por seus cacoetes e teatralizações exageradas, mas cuja genialidade está mesmo em revelar a maldade palpável por trás desse exagero, em construir um monstro carismático que ainda queremos que seja derrotado (e, de preferência, com requintes de crueldade). Se o visual do ator deve muito ao Drácula perfeitamente engomadinho, e até por isso inteiramente sinistro, de Bela Lugosi, nas dinâmicas de cena Cage traz esse rei dos vampiros para a atualidade com uma pitada de estrela do rock decadente, em completo delírio sobre o seu lugar no mundo. Um quê de Keith Richards, se Keith Richards estivesse interessado em governar a humanidade.

Na esteira do Drácula estiloso de Cage, Renfield ostenta uma direção de arte (de Alec Hammond) requintada, responsável tanto pelas estátuas empoeiradas e bolsas de sangue que decoram um hospital abandonado quanto pelas luzes coloridas e gelo seco que preenchem um bar em Nova Orleans. Na hora da ação, as escolhas musicais pop do diretor McKay são pareadas com uma edição (de Zene Baker, Ryan Folsey e Giancarlo Ganziano) ágil e sintonizada ao ritmo da trilha. O filme acerta em cheio ao usar a carnificina explícita permitida pela classificação indicativa alta como recurso cômico de dinamização da ação - ou seja, pode ser que Renfield não alcance o Olimpo da adrenalina hollywoodiana de um John Wick, mas você provavelmente não vai se sentir entediado assistindo-o.

Entre os muitos problemas no atual estado dos blockbusters americanos, apontados extensivamente por críticos e fãs, talvez o mais elementar seja o quanto eles se incham (em duração, em orçamento, em autoimportância apocalíptica) para disfarçar o completo vazio cínico de suas intenções e ideias. Renfield é o mais perto de um antídoto para isso que você vai conseguir encontrar dentro do próprio sistema: um espetáculo popular curto, estiloso e sincero. Não é tão difícil assim, viu, Hollywood?

Nota do Crítico
Ótimo