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Síndromes e um Século | Crítica

Um desconcertante trabalho de Apichatpong Weerasethakul

31.10.2006, às 00H00.
Atualizada em 21.09.2014, ÀS 13H21
Síndromes e um Século
Sang Sattawat
Tailândia/frança/Áustria, 2006
Comédia/Drama - 105 min.

Direção e roteiro: Apichatpong Weerasethakul

Elenco: Arkanae Cherkam, Jaruchai Iamaram, Sakda Kaewbuadee, Nu Nimsomboon, Jenjira Pongpas e Sophon Pukanok.

A memória é uma peça central de Mal dos Trópicos, filme do tailandês Apichatpong Weerasethakul que levou o prêmio da crítica no Festival de Cannes e na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo em 2004. Central porque norteia as ações na primeira metade do filme - memória mecânica, individual, expressa nas fotografias - e também na segunda metade, quando a memória coletiva, transcendental, une o homem aos mitos da natureza.

Síndromes e um Século (Sang Sattawat, 2006), o novo e igualmente desconcertante trabalho do diretor, também parte de uma memória. No caso, o passado do próprio Weerasethakul. Os seus pais eram médicos em um hospital da província de Khon Kaen, e ele passou boa parte da infância cercado pelo mundo das doenças e dos tratamentos. Hoje com 36 anos, o tailândes resgata essas lembranças da maneira que melhor sabe: contemplando.

O filme se divide em dois, como Mal dos Trópicos. A primeira metade mostra um modesto hospital incrustado no meio da selva. A segunda retrata ambiente semelhante, mas numa cidade cosmopolita. Há personagens e situações que se repetem na parte um e na dois, com ligeiras mudanças nos diálogos, nas reações. Em ambos os momentos, há um denominador comum: a realidade tailandesa que concilia o budismo com a medicina tradicional.

Tentar explicar a história seria rodar em falso, mesmo porque Weerasethakul é um poeta, não um prosador. Não dá para identificar no longa uma trama, uma sinopse que seja. Os momentos do filme se encadeiam como estrofes, não como capítulos. Essa analogia com a poesia pode soar cafona, mas não deixa de ser uma analogia precisa: o cineasta filma em versos, e cabe ao espectador descobrir onde está a rima.

Se não há uma sinopse, pois, então que as partes tratem de representar o todo. Há uma cena em que um monge visita a doutora atrás de pílulas para os seus pesadelos. Um monge um tanto apegado a bulas, esse. Mas um monge que identifica no ar uma carência da médica e puxa da sacola umas ervas que resultarão num chá restaurador. Cada um ajuda o outro da maneira que sabe. Sob o interesse de um médico, o filme é um encanto: como o nosso século admite tratamentos distintos para as mesmas síndromes!

Mais uma cena: o dentista combate as cáries de outro monge, que jamais havia tratado dos dentes. Na primeira parte, a da floresta, o dentista se revela um cantor de música popular tailandesa, enquanto o monge solta algumas tiradas um tanto irônicas. Na segunda parte, dentro de um consultório kubrickiano, todo branco, o mesmo dentista e o mesmo monge mal se falam, separados por intransponíveis barreiras de higiene.

É complicado extrair leituras de Síndromes e um Século, mas é facílimo arrebatar-se com o poder das suas imagens. Formado em arquitetura, de extenso trabalho em vídeo-instalações, Weerasethakul se comporta frequentemente como um artista plástico, concebendo planos assombrosos, brincando com o extra-campo (aquilo que está fora do enquadramento, longe do alcance do olhar, mas sabemos que está lá). A falsa sincronia imagem-som na cena do tênis no corredor do hospital é espetacular. Da mesma forma, não dá para explicar o que é a passagem da cura pelo chakra. A câmera avança até a mulher do fundo, nos hipnotiza, depois retorna pela esquerda e enquadra outra mulher, que está olhando direto para nós. O que é aquilo!

Se você precisa de uma definição, Síndromes e um Século pode ser classificado como cinema sensorial. E se o cinema é a arte de nos fazer ver e sentir a realidade com outros olhos, Apichatpong Weerasethakul é O Cara.

Nota do Crítico
Excelente!