Demi Moore em cena de The Substance (Reprodução)

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Crítica

A Substância é uma tonelada de dinamite explodindo por 2h30 sem parar

Demi Moore e Margaret Qualley estrelam um clássico instantâneo do horror corporal

19.09.2024, às 08H39.

A Substância não sabe quando parar. O filme de Coralie Fargeat, que chacoalhou a competição pela Palma de Ouro no Festival de Cannes 2024, tem quase 2h30 de duração, o que estica tanto o seu conceito de ficção científica quanto a sua capacidade de inventar novas bizarrices até um ponto que deveria ser insustentável para qualquer narrativa. E, ainda assim… em A Substância, Fargeat (também roteirista) se prova uma daquelas artistas de eloquência incansável e audácia inflexível, uma contadora de histórias cujo impulso discursivo parece nunca se esgotar, com a qual sempre podemos contar para nos surpreender, nos mover e nos intrigar.

Produto primário dessa sensibilidade, A Substância é uma tonelada de dinamite em forma de cinema, que ainda por cima não para de explodir por um segundo sequer durante seus quase 150 minutos de duração. E é excitante entender que esse cinema da inflamação, do escândalo, da cooptação de linguagens vulgares (e, por vezes, até regressivas) para empurrar ideias radicalmente contemporâneas adiante, ainda existe. Fargeat merece aqui aquele que talvez seja o título mais elogioso e essencial que um artista pode receber: ela é vital, e seu filme também.

Em A Substância, acompanhamos a ex-estrela de cinema (indicada ao Oscar!) Elisabeth Sparkle, vivida por Demi Moore. Após ser esquecida por Hollywood, ela encontrou sobrevida profissional como apresentadora de um programa televisivo de ginástica, bem à la Jane Fonda, mas agora até a emissora está procurando substituí-la por um “modelo mais jovem”. Entra em cena a tal substância misteriosa, que promete criar “uma versão melhor de você” - o que acaba sendo, é claro, bem literal, já que Sparkle dá à luz a uma garota de 20 anos (Margaret Qualley) que tem tudo para conquistar o mundo em seu lugar.

Dentro das elaborações típicas do gênero em que se encontra, o filme não chega a reinventar a roda - mas sabe girá-la ao seu proveito. Fargeat obedece agilmente às regras do sci-fi de alto conceito, introduzindo as regras da substância com eficiência e estilo (ela própria assina a montagem do longa, ao lado de Jerome Eltabert e Valentin Ferrón) e abrindo caminho para que o filme desenrole as consequências progressivamente mais grotescas da desobediência dessas regras. Para um filme de 2h30, A Substância se move com velocidade excepcional, e há quem vá reclamar do pouco espaço de respiro entre as subidas de tom, mas Fargeat tem tanto a dizer que dá para perdoar sua impulsividade.

Também na aproximação do horror corporal a cineasta se mostra destemida, até impiedosa. A Substância tem design de som incômodo, cheio de ruídos molhados de carne e osso se movendo como não deveriam; direção de arte (assinada por Stanislas Reydellet) e maquiagem imaginativas em sua concepção de distorções do cotidiano, em seu desenho de criaturas que entretém e incomodam e referenciam e inventam, tudo ao mesmo tempo; e, por fim - talvez até mais importante - um olho afiadíssimo para o bizarro fora das situações mais obviamente monstruosas da trama. Porque, até quando não está lidando com monstros, A Substância sabe que… bom, está sim.

É nesse pique que Fargeat toma para si a linguagem do male gaze, abusando das tomadas de comercial, da câmera lenta, das texturas de figurino e pele, dos ângulos duvidosamente exploratórios, para filmar o corpo de suas protagonistas. Por cima da trilha sonora euforicamente sintetizada do britânico Raffertie, o efeito é de incitação e questionamento, chutando o espectador por baixo da mesa, desafiando-o a não se sentir excitado diante dessa entrega irrestrita ao aspecto tátil do corpo feminino como ele sempre foi mostrado no cinema. Mas se ele se entregar, é claro, o filme o condena cúmplice da monstruosidade que vem depois.

Moore e Qualley, por suas vezes, escondem no fundo dos olhos a perturbação de um mundo que as obriga a se contorcer e se humilhar para ganhar a vida, para se sentirem amadas, para ter valor. Brincando com suas próprias imagens, elas constróem uma relação que desagua no mãe-e-filha conflituoso de outros clássicos do cinema, mas também vai mais longe do que eles - existe aqui o ressentimento da substituição, da revivência da juventude por procuração, mas também um antagonismo e uma responsabilização mais assombrosos, calcados nas imagens que uma vê da outra dentro do apartamento onde moram. E Fargeat as dirige para colidir com esse conflito sem tirar o pé do acelerador, exatamente como faz com todo o resto do filme.

De certa forma, todos os jogos de A Substância são, pelo menos, jogos duplos. Se render e se rebelar contra a linguagem masculinizada do cinema, ter asco e admirar a carência absoluta (e manufaturada!) que dirige a vaidade feminina, reciclar imagens do horror (O Iluminado, Carrie, etc) para reclamá-lo como inteiramente seu. Que ele suporte todas essas contradições, e siga em frente sem dar sinal de engasgo, é testamento da obra de arte excepcional que ele é.

Nota do Crítico
Excelente!