Filmes

Crítica

Wasp Network: Rede de Espiões

Wagner Moura toma a cena em filme de espionagem "sem espiões"

19.06.2020, às 18H54.
Atualizada em 19.06.2020, ÀS 19H27

Assim como Personal Shopper era um filme de voyeurismo e assombração sem necessariamente precisar de um voyeur ou um fantasma em cena, o filme mais recente do diretor francês Olivier Assayas, Wasp Network - Rede de Espiões, é uma trama de espionagem sem espiões. Eles estão em cena, sim, disfarçados - como espiões afinal devem ser -, e não desfilando entre aliados e rivais que têm plena noção do jogo duplo em movimento. Para Assayas interessa que a encenação reflita a realidade vivida por seus personagens, e isso impacta enormemente Wasp Network. A exemplo do que ele tentou fazer em Personal Shopper, a questão aqui é: que filme dá pra fazer, quando se renegam as fórmulas de um gênero de regras bem demarcadas, como o suspense?

Quando se fala de tramas com agentes infiltrados e disfarçados, o modelo que temos (de True Lies a The Americans) quase sempre coloca o espectador numa posição onisciente; é parte da premissa dessas histórias, parte das regras, que o público entenda os riscos (na maioria das vezes, está na linha a vida do agente que faz de tudo para não ser descoberto) e todos os esforços se concentrem em preservar esses segredos. Em Wasp Network, preservar o segredo não é tão importante. Na verdade, o objetivo dos espiões ao final da sua missão é justamente revelar sua identidade ao mundo, ostentar sua esperteza. Assayas já abole de cara, então, uma das regras: a de que o espião deixa de "existir", como personagem, quando ele para de espionar. Neste filme, a espionagem é uma condição e não uma razão de ser que define o personagem.

Assayas tenta uma estrutura arriscada, dividida em dois. Na primeira metade do filme, sobre desertores do regime cubano em 1990 que entram nos EUA atrás de exílio como milhares de outros cubanos, conhecemos o drama desses desertores e a repercussão de seus atos entre amigos, colegas de trabalho e familiares. A partir da metade, como numa imagem espelhada, invertida, os desertores na verdade se revelam patriotas dispostos a fazer enormes sacrifícios em nome da causa da revolução. Eu tento aqui descrever o filme sem entrar em spoilers demais, porque afinal a proposta de Assayas depende de que o espectador, assim como os personagens, receba apenas as informações que convêm à narrativa em dado momento.

O que dá pra dizer é que Wasp Network não tem a menor vocação para ser Onze Homens e um Segredo, e o filme atravessa uns ruídos quando precisa se reajustar a lógicas do thriller de golpe e espionagem, como quando uma desajeitada narração em off acelera a exposição para explicar a reviravolta central. A câmera de Assayas e a decupagem nunca se engajam de verdade nesse frenesi, os zoom-ins são muito econômicos porque afinal o filme está mais à vontade no estudo de personagem e no registro desafetado, preocupado em contextualizar os corpos em espaços diferentes, nos EUA e em Cuba. Isso resulta num filme distanciado, cerebral, que parece descuidado em alguns momentos (como na entrega de exposição, como quando alguém diz que fulano está vivendo uma vida de ostentação e o roteiro mostra isso depois de forma burocrática para provar o ponto do personagem).

As inversões de Wasp Network parecem mais interessantes a posteriori, quando o quadro todo se completa para nós e a primeira metade muda, pelo contraste com a segunda. Algumas atuações, em especial à de Wagner Moura, uma das melhores de sua carreira, cumprem perfeitamente o que o filme exige: que esses espiões não sejam nada sigilosos na forma como se comportam, enquanto são espiões de fato, até o momento em que passam a agir de forma obscura e paranoica, quando teoricamente não são mais espiões. Moura responde bem à proposta porque sabe traduzir o estado do personagem em linguagem corporal; ele surge atlético e esguio como um típico cubano olímpico, seu perfil seria o do espião bailarino, frio e inabalável, não fosse o personagem tão charmoso, e quando a virada bate descobrimos que seu sorriso franco e convidativo (o sorriso de Wagner Moura é quase uma exigência de contrato em seus filmes) vinha de um lugar muito treinado, impiedoso. A forma como Assayas registra magnetizado esse domínio de cena lembra a Maggie Cheung serpenteando em Irma Vep; esses gestuais comportam em si todo o mistério e toda a verdade do filme.

Que o personagem desapareça depois sem ninguém "avisar" o espectador é um grande indício do curto-circuito que Assayas está propondo aqui. É como se o cineasta colocasse à prova (aliás, como já fez um pouco em Carlos com Édgar Ramirez, também escalado aqui) o mito dos revolucionários latino-americanos, corpos de apelo transpirante, irresistíveis em vida e eternos no imaginário popular depois de mortos. Ao sumir com Moura abruptamente, e conjecturando se depois sua figura permaneceria como espectro, como ideia, Wasp Network está testando se o mito se comprova. Independente da resposta, é uma visão bem forte de um mundo essencialmente masculino, que relega mulheres a posições instrumentalizadas (Penélope Cruz, sempre muito segura, transmite isso bem em cena). O filme dá a entender nesse gesto que, mais do que a ideia romantizada de fazer a revolução, o ideal cubano funcionou e prosperou no continente por que se baseou num tipo muito específico, sensual, de idolatria.

Ou seja, ainda que pareça um filme-ensaio impossível sobre a natureza da espionagem no cinema de gênero, Wasp Network tem toda a sua atenção voltada para espiões reais - materializações de ideias e lendas mas corpos reais acima de tudo - feitos de carne e osso, neste caso carne principalmente.

Nota do Crítico
Ótimo