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Entrevista

No Intenso Agora | "Queria saber o que uma imagem diz sobre o regime político em que foi feita", diz diretor

Conversamos com João Moreira Salles sobre seu novo filme

07.11.2017, às 19H17.
Atualizada em 07.11.2017, ÀS 21H05

Depois de dez anos longe do circuito comercial, após a trajetória premiada de Santiago (2007) no Brasil e no exterior, João Moreira Salles está de volta aos cinemas com uma reflexão crítica sobre o valor político e a força poética das imagens de arquivo: o filme No Intenso Agora. Sua primeira projeção pública ocorreu durante o Festival de Berlim, em fevereiro, quando abriu para plateias alemãs registros de 1968 da Europa, do Brasil e da China – sendo que estes últimos foram colhidos ao longo de uma viagem de sua finada mãe à Ásia. A projeção em solo germânica foi ovacionada.

Narrado em primeira pessoa pelo cineasta, o longa-metragem já correu o mundo após a Berlinale: passou pelo 15º Yamagata International Documentary Film Festival, um dos mais importantes festivais de documentários da Ásia, no qual venceu o prêmio especial do júri; foi para o Cinéma Du Réel, na França, onde conquistou três prêmios: melhor trilha (Rodrigo Leitão), melhor filme pela Scam (Sociedade Civil dos Autores Multimídia) e prêmio do Júri das Bibliotecas; bateu ponto na Espanha, no 65º Festival de San Sebastián; estendeu sua passagem por terras ibéricas no DocLisboa; foi para uma exibição de gala no DocAviv Film Festival, em Israel, na prestigiosa Master Section; e já está prometido para o IDFA (Festival Internacional de Documentários de Amsterdam). Ao longo de tantas andanças, Salles aprendeu muito sobre o que editou. Parte desse aprendizado, ele compartilha com o Omelete, na entrevista abaixo:

Omelete: Até que ponto a ideia de “documento” e o conceito de “cinema”, como arte, podem se conjugar no tipo de filme que você faz?
João Moreira Salles: Tem uma coisa que é dita em No Intenso Agora, a partir da qual, eu estou falando de mim, que é uma sequência muito comovente relativa à extinta Tchecoslováquia, em 1968, quando as pessoas saem com suas câmeras para as ruas no dia 31 de agosto, em meio a uma invasão de tanques. Eu acho que elas saem meio sem saber bem por que estão saindo. Sabem apenas que estão indo fazer um documento, um registro. Se o material registrado viraria filme ou não... isso não estava em questão. Até porque, naquele momento, naquele lugar, fazer um filme era quase um ato de subversão político. As pessoas poderiam ter sido presas, mas elas queriam deixar um testemunho. Isso me fez lembrar do motivo pelo qual eu rodei Notícias de uma Guerra Particular.

Omelete: Documentário de 1999 que é um marco do formato e um dos pilares da reflexão sobre a violência nas favelas. Qual é a relação? 
João Moreira Salles: Naquela época o Rio tinha virado um faroeste. A cidade estava conflagrada, com uma política de segurança pública na qual a polícia dava um bônus para o policial que sacasse a arma e atirasse primeiro. Havia bônus de periculosidade. Eu, a Kátia Lund (codiretora do projeto) e o Waltinho (Salles, irmão do documentarista) falamos: a gente tem que registrar esse negócio, não importa como ou pra onde mandar ou em que festival exibir. A questão é prestar testemunho.

Omelete: Vale a mesma lógica para Entreatos, no qual você registrou a campanha de Lula para a presidência, em 2002?
João Moreira Salles: Corretíssimo. Quando ficou óbvio que era muito difícil tirar a presidência dele, eu não tive dúvidas de que estava diante do fato político mais importante da minha vida e de que esse fato precisava ser registrado. Desde o golpe militar, foi o evento político mais importante do país, pelo fato de alguém da origem social dele ter chegado onde chegou. E eu, como documentarista, não posso deixar essa coisa acontecer sem que tente fazer um registro, não importa a simpatia que eu possa ter pelo projeto político dele. Aquele filme pode ser bom ou ser ruim - as pessoas se dividem. Mas o material bruto, de 300 horas, é inquestionavelmente importante e eu tornei-o público. É um documento. E documentos são essenciais. Tão essenciais quanto os questionamentos acerca das condições nas quais os documentos são elaborados.

Omelete: E como são as condições que determinam os documentos de No Intenso Agora
João Moreira Salles: O que me interessava no resgate daquele material de época era tentar entender como se filma numa democracia, como se filma em regime autoritário e como se filma em regime totalitário. O que uma imagem pode dizer sobre o regime político na qual ela foi realizada só pelo enquadramento ou pelo fato de ela estar ou não em um tripé, ou pelo fato de ela usar ou não uma grande angular. O que eu posso inferir do contexto político de uma imagem só de olhar pra ela. Em No Intenso, temos filmagens de Paris, em maio de 68, e da Tchecoslováquia, em agosto do mesmo ano. Mesmo governada por um general, a França era um país democrático. E numa democracia, você não corre o risco de morrer se filmar eventos como foi Maio de 68. Por isso, nas filmagens de Paris, a câmera está sempre perto do fato. Ela usa grande angular e não treme. Mas nas imagens da Tchecoslováquia, onde a liberdade não era total, ocorre o oposto. Filamava-se pelas frestas, com teleobjetivas. A imagem treme. O fotógrafo se esquiva de um eventual tiro ou da mirada de um soldado. Essas coisas fazem parte do registro. Dão vida ao documento.

Omelete: O que é o Tempo para o documentário?
João Moreira Salles: Tem um livrinho do Ítalo Calvinho chamado Porque Ler os Clássicos. Ali ele dá várias definições do que seria um clássico. Uma delas, muito precisa, é: um clássico é um livro que nunca acaba de dizer aquilo que tem a dizer. À medida que os anos passam, a matéria do Tempo faz com que camadas até então escondidas se revelem e iluminem o Presente. Isso torna um clássico inesgotável, pois ele marcha com o Tempo, mas carrega em si um dispositivo que faz com que segredos preciosos guardados dentro dele só se revelem no momento certo, propício ao entendimento. O clássico é infinito. Documentos têm essa característica. Isso ficou muito claro para mim no material bruto do meu longa anterior, Santiago. Não falo do filme, mas em tudo o que se iluminou pra mim das entrevistas dos anos 1990 do qual esse documentário se origina. Era um material bruto que vi aos 32, 33 anos e revi aos 42... 43 anos. O material era o mesmo. O que eu vi era diferente. Você pode até argumentar: ‘mas o que mudou foi você’. Sim. Eu mudei. Mas eu vi no material coisas para as quais eu era cego antes, como se tivesse um certo daltonismo para algumas cores específicas. As cores sempre estiveram lá... mas só no momento certo eu pude vê-las. A diferença entre o que eu aos 30 e o que vi aos 40 é o Tempo. Não houve fossilização. Houve evolução.  

Omelete: E que evolução podemos encontrar nos arquivos de No Intenso Agora?
João Moreira Salles: Os filmes de Paris de 1968 eram feitos para inflamar e levar mais pessoas às ruas. Mas se eles forem vistos hoje, pela mesma garotada de 1968, que está mais velha, estarão diferentes. Dá para se perceber neles uma desconexão entre o espírito libertário e a prática política. A prática era conservadora, apesar da explosão de possibilidades comportamentais. Todo mundo dizia a mesma coisa. Nos EUA, com a questão do movimento negro, do movimento das mulheres, do rock, as práticas políticas comportamentais foram muito mais vigorosas do que na França de 1968.