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Entrevista

Omelete entrevista: Otto Guerra, diretor de Wood & Stock

Omelete entrevista: Otto Guerra, diretor de Wood & Stock

16.10.2006, às 00H00.
Atualizada em 03.11.2016, ÀS 02H13
Wood & Stock: Sexo, Orégano e RocknRoll
Brasil, 2006 - 81 min
Animação/Comédia

Direção: Otto Guerra
Roteiro: Rodrigo John

Vozes: Zé Victor Castiel, Sepé Tiaraju , Rita Lee, Janaína Kremer, Tom Zé, Michele Frantz, Felípe Mônaco, Julio Andrade.


O gaúcho Otto Guerra esteve em São Paulo na época do Animamundi. Veio mostrar seu trabalho mais recente Wood & Stock - Sexo, Orégano e Rock ´n Roll. No meio de sua agenda cheia de compromissos, ele parou um tempinho para trocar uma idéia com o Omelete. O lugar marcado foi o Bar Brahma, na esquina da Ipiranga com a São João, um dos cruzamentos mais conhecidos do Brasil. E o que era para ser um bate-papo rápido sobre o filme acabou virando uma longa e prazerosa conversa de quase uma hora. Do tema principal vieram à tona discussões sobre os processos de produção e distribuição dos filmes no país. Tudo colocado de maneira simples e bem humorada, claro! Até do caso que ele teve com o Angeli ele falou... ;-)

De onde veio a idéia do longa?

A idéia vem de uns dez anos atrás, quando fiz um filme chamado Rocky & Hudson - Os caubóis gays, que também é baseado em quadrinhos. Naquela época o Adão [Iturrusgarai], autor do Rock & Hudson, veio morar em São Paulo e acabou ficando muito amigo do Angeli, quando trabalhou com ele, Laerte e Glauco, fazendo Los três amigos. E como fã do Angeli eu achava muito legal pegar o universo do cara e tentar transpor para um filme.

A idéia já tem estes dez anos, mas começamos a roteirizar e efetivar o projeto de fato em 2000, quando a gente ganhou um prêmio chamado B.O. (Baixo Orçamento), do Ministério da Cultura, para produção de cinema e conseguimos 50% do orçamento.

Por ser uma história baseada em tiras de quadrinhos, tivemos um problema incrível para escrever o roteiro. Foram pelo menos dois anos de roteirização. A gente queria que não traísse o universo do cara, que conseguisse reproduzir sua obra. Considero o Angeli um gênio e por isso foi muito difícil. O próprio Angeli dizia que a gente ia fazer uma coisa meio Turma da Mônica, por ser animação. Ele viu o filme no Festival de Recife e gostou. Eu estava na sessão e fiquei reparando o rosto dele e tal. A gente conseguiu trazer para a tela uma adaptação quase fiel ao trabalho do cara.

Eu li que ele emprestou pra vocês todo o material que ele tinha. Além disso, ele teve uma participação real no processo?

Eu tive um pequeno romance com o Angeli em 98 e a gente aprofundou muito esta questão de identidade e tal... (risos) Falando sério... eu lia muito Chiclete com Banana e tive as mesmas influências do cara, Crumb, rock ‘n roll. E naturalmente a adaptação da história dele foi até fácil, em termos. Eu imaginava como seriam as vozes dos personagens, o que a Rê Bordosa queria dizer. Porque se você olhar bem o trabalho do Angeli ele é todos os personagens. Ele é Rê Bordosa, ele é Skrotinho.

O que ele fez foi brifar os personagens. A Rê Bordosa, por exemplo, não ri. A sandália do Stock fica o tempo arrastando, porque ele é um velho hippie decadente. A gente conversou sobre como cada um deles se comportaria na tela. De fato, a participação dele foi olhar o material e dar algumas sugestões.

Ele é um virginiano. Ele mesmo desenha todos os quadros e o trabalho de animação e roteirização teria uma demanda de tempo enorme, então ele via eventualmente as animações e dizia o que achava.

O desenho que vocês conseguiram colocar na tela é o traço do Angeli, no cenário, nos personagens, tudo! Vocês não tiveram vontade de mexer em nada, ou a necessidade de mudar algo porque não estava funcionando? Como foi trabalhar com este modelo já pronto?

Na animação, a direção de arte é sempre o grande problema e desta vez a gente já tinha a direção de arte pronta. Nós já gostávamos muito do trabalho do Angeli. Então, o nosso trabalho foi adaptar aquilo para que funcionasse na animação. A gente conseguiu um diretor de arte, que é o Jack Kaminski, que ficou um ano copiando, treinando, estudando o Angeli. Ele chegou até a ter uma crise de identidade. Depois de um ano de trabalho, ele ficava vagando pela produtora falando ‘eu não sou eu. Eu não sou eu. Ele enlouqueceu, mas conseguiu fazer o traço tão bem que o próprio Angeli admite que gostou muito. E ele é um cara muito exigente. O Kaminski e os animadores foram muito felizes.

E como foi a escalação das vozes dos personagens principais e das participações especiais do Tom Zé e Rita Lee.

Sem dúvida, a personagem principal é a Rê Bordosa, o personagem que o Angeli matou porque ela estava exigindo muito dele. Ela é o caso da personagem que acaba ganhando vida própria e o criador vira uma vítima dela.

Quando começamos a fazer o roteiro, o Rodrigo falou ‘não tem como misturar a Rê Bordosa com Wood & Stock, mas uma das poucas exigências que eu fiz pra ele era que a Rê Bordosa tinha que estar no filme. Fazer um filme do Angeli sem a Rê Bordosa é como fazer o King Kong sem o macaco.

Mesmo contrariado ele colocou a personagem, e ele e a Marta, a produtora, sugeriram a Rita Lee para fazer a voz. A Rita Lee disse uma vez que o Angeli tinha plagiado a vida dela para fazer a personagem. Então ela não precisou interpretar. Ela é a Rê Bordosa!

A gente usou também o Tom Zé para fazer o Raul Seixas, já que os dois são baianos. O Tom Zé é uma grande figura. Um cara genial e super gentil. Ele colocou umas duas músicas dele no filme. A Rita Lee também tem umas músicas na trilha.

A gente usou, lá do sul, o Zé Vitor Castiel, que é o próprio Wood. Ele tem a mesma idade, a mesma formatação. É um cara versátil e muito generoso também, já que os cachês são muito baixos. O Sepé, que fez o Stock, era hippie nas décadas de 60, 70 em São Paulo. Então ele tem toda a manha da fala, das gírias do Stock.

A gente conseguiu um resultado de vozes que até o Angeli falou ‘pô, eram as vozes que eu imaginava que eles teriam quando eu pensava neles.

Eu vi que você fez quadrinhos antes, na adolescência. O que te levou a sair dos quadrinhos e partir para a animação?

Mesmo hoje em dia, o pessoal que faz quadrinhos no Brasil produz pras editoras americanas. Na época em que eu comecei, em 78, também não tinha como conseguir digamos ‘proteína - comida, casa e tudo isso. E no desenho animado tinha a janela da publicidade, que é uma grana que tu faz o trabalho e recebe 30 dias depois, ou recebe uma parte à vista. Com a propaganda eu consegui uma grana, consegui equipamento, consegui aprender a produzir animação. Trabalhei uns seis anos exclusivamente com desenho comercial. Fizemos uns 500, 600 comerciais.

A gente parou de produzir comercial na década de 90. Quando mudou de câmera para computador, o preço da animação baixou muito e desta forma meio indireta eu consegui sair do mercado de propaganda e produzir só ficção. E isso foi uma tremenda sorte, na verdade. O fato de eu não poder mais competir porque os computadores baixaram os custos me obrigou a achar outras saídas. Por isso, a partir de 92 eu passei a fazer só ficção. Só filmes através de concursos públicos e correndo atrás.

O que você acha da forma de produção que existe hoje no Brasil, que é tão dependente destes concursos? É um processo justo? E como funcionam as inscrições para estes concursos - existe uma espécie de fórmula para conseguir ganhar, por exemplo, um cara que decidir começar hoje tem a mesma chance de quem já está no mercado?

O mecanismo de produção do cinema independente no Brasil é uma distorção. O que tem de acontecer, e na minha opinião vai acontecer, é que o cinema vai casar com a televisão. Vai haver uma mudança assim que o cinema tiver bons filmes, que se identifiquem com o público. Daí, essa produção vai ter parte dela de fato paga na bilheteria e outra parte na venda para TV.

No Brasil, essa questão do cinema não chegar ao público vem de quando surgiu a televisão, lá na década de 50. Ela veio do rádio e competindo com o cinema. O Brasil tem uma puta indústria áudio-visual que é a televisão. É uma das maiores do mundo, tanto em qualidade quanto em quantidade. Mas infelizmente nessa indústria há uma separação entre televisão e cinema. Agora parece que tá rolando uma namoro. Pode ser que isso acabe em casamento, e eu torço pra que isso aconteça.

Nós estamos vivendo um momento de transição. O cinema acabou lá em 90, quando o Collor acabou com a Embrafilme. Agora tem essa retomada, que acontece em cima de leis de redução fiscal, da qual eu participo. São em média 300 projetos para 10 vagas. Os programas são lícitos. Eu não tenho informação de nenhum concurso público a partir de 90 que não tenha a característica de ser lícito, com um júri. E aí é gosto. Você pode ter sorte, azar e algumas variantes, mas não existe falcatrua.

Mas há uma distorção que eu acho que tem de acabar. O próprio Wood & Stock é um filme financiado. Um dos problemas do pré-pagamento do filme é o fato de que não interessa se o filme vai ou não entrar em cartaz. Mas a gente não quer que este filme fique na prateleira. A gente quer que ele chegue ao mercado, enquanto tem produtor e diretor que não se interessa em correr atrás da distribuição.

Falando agora de distribuição. Vocês estão inaugurando uma nova distribuidora no mercado, a Snif Snif. Como funciona esta parceria?

A distribuição é questão bem importante. A produção é uma complicação, mas tudo bem. Sempre tem muita dificuldade, mas se tu vai atrás tu produz o filme. A distribuição é uma segunda etapa e talvez mais completa porque existe toda uma indústria montada. O Brasil tem um bom público de cinema e por trás deste público tem uma comunidade de distribuidores e exibidores grande, que mexe com muito dinheiro.

Praticamente, existem três formas de se distribuir um filme no Brasil. Com as majors, que são as empresas americanas que trabalham no Brasil e têm por lei a obrigação de ter 30% dos seus filmes brasileiros. Tem as médias, que chegam a investir alguma coisa em lançamento. E tem as pequenas, que são a maioria.

A Snif Snif é a empresa montada lá em Porto Alegre pela Marta Machado, que é produtora do filme. Cada filme tem uma característica única e tem que ser estudado caso a caso. Durante um ano ela pesquisou qual a melhor maneira de colocar o filme no mercado. A questão do público é imponderável. Não tem uma fórmula. Nem nos Estados Unidos os caras conseguem prever o que vai acontecer com o filme. Existem apostas, mas não existe garantia alguma. É muito subjetivo.

O filme Wood & Stock teve quatro sessões e foram todas elas surpreendentes. A gente fez um trailer e um exibidor pediu só pra ele 26 cópias do trailer aqui em São Paulo, sendo que ela tinha feito 30 para todo o Brasil. A gente não tem idéia do potencial do Brasil para o lançamento de um longa-metragem. Nós estamos neste momento repensando o que fazer. Eu estive em uma major e o cara da Fox falou que animação adulta é complicada de lançar. É um assunto muito amplo e difícil.

Vocês pensam em lançá-lo digitalmente?

Claro! A maioria das salas é de película, mas a gente está preparando a versão digital. Vi lá em Porto Alegre a versão digital do trailer e achei melhor que a 35 mm. Há muitos anos eu nunca imaginaria que o digital seria melhor que o filme. O digital tinha a limitação de ser cálculo, não tinha aquela coisa da transparência, não tinha a luz. Eu achava que o cinema de 35 mm. nunca ia acabar, mas pelo que eu vi agora, vai acabar.

E quando eu saí da sala eu falei pra Marta ‘vamos pegar a cópia e ela falou ‘não tem cópia, veio por satélite. O arquivo vem codificado para três apresentações. Eles recebem a cópia digital e pagam por exibição. Sem dúvida é o que vai acontecer.

Os dois longas que você fez, Rocky & Hudson e agora este aqui, têm personagens que já são mais conhecidos. E você tem uma série de curtas que são mais autorais. Por que isso? É mais fácil de fazer e depois colocar no mercado?

Quando eu faço trabalho autoral, eu uso referências de personagens, de universos com que eu me identifico. Pelo fato do Adão ter toda a trajetória dele ligada aos quadrinhos, os personagens são extremamente ricos. O cara dedicou a vida dele toda a mostrar seus personagens. A mesma coisa com o Angeli. E eu, tendo que fazer as propaganda, tendo que fazer as coisas para manter a produtora, não tenho um universo próprio. Por isso eu busquei personagens que eu achava que teriam a ver comigo.

O filme do Adão, a gente fez com 60 mil dólares. É um filme extremamente trash, mas que eu vejo ainda hoje em dia e me orgulho. Adoro ter feito aquele filme. Ele foi feito por prazer. Pra tomar trago, pra fazer festa. É um filme que apesar de ser trash, quando eu estiver pra morrer vou poder dizer ‘pô, fiz um filme do Adão. Vou morrer feliz.

E como foi quando saiu O segredo de Brokeback Mountain? Vocês deram risada e falaram ‘pô, a gente já fez isso antes?

O Adão está processando o Ang Lee, alegando que ele teria copiado a idéia dele. (risos). Falando sério, chegou a sair matéria do Rocky & Hudson, que é um filme de 88, em função do êxito do Brokeback Mountain.

Eu não vi o Brokeback Mountain, mas acho que não tem nada a ver. O Adão achou uma irreverência, ele brinca com essas coisas. O próprio nome, Rocky Hudson, vem de um ator gay que morreu de AIDS. Já Brokeback Mountain trata mais do preconceito. Rocky e Hudson se amam, assumem e se divertem com essa história de serem gays. É uma puta duma piada. Já o filme trata da questão do peso. Imagina como é descobrir que tu é gay no mundo atual. Tu tá ralado!

Você pensa em fazer alguma coisa live-action, com atores de carne e osso, ou essa não é a sua praia?

Na época da publicidade eu fiz algumas coisas que misturavam live-action com animação, mas eu tive grande dificuldade de lidar com isso. Ter um ator no set é um problema. Dizer a cara que o cara tem que fazer. É melhor fazer os bonecos animados. É mais fácil lidar com eles.

Qual a diferença do curta pro longa-metragem? É só a duração? Em vez de ralar 6 meses você vai ralar 6 anos?

O curta-metragem tem uma função bem diferente. Eu diria que é mais fácil porque numa história de 1 minuto a 15 minutos, você pode colocar uma ou algumas situações que contam uma história. Num longa-metragem, se você tem a intenção de contar uma história de mais de uma hora, a dificuldade de roteirização é geometricamente maior. Roteirizar um longa é uma tarefa absurda. É um trabalho enorme. As coisas não podem estar ali a mais ou a menos, e têm de estar ali por um motivo.

E não temos o costume de fazer roteiros de longas-metragens no Brasil. Então a gente acaba fazendo meio que na intuição, experimentação e testes.

Pra terminar, queria saber quais os próximos projetos.

A gente ganhou um concurso bem grande para um longa-metragem, chamado RGE, que coloca 50% do orçamento na saída, ou seja, tu consegue captar o resto de uma forma mais fácil, mais humana. Atualmente estamos reescrevendo o roteiro pela quarta vez.

Dá pra fazer um filme simples na imagem, desde que tenha um roteiro muito bom. Agora, não adianta tu ter muito dinheiro e uma técnica fantástica, mas não ter um bom roteiro. Por isso a gente está reescrevendo Fuga em Ré Menor, que também é um filme baseado em personagens lá do Sul, o Tangos & Tragédias. É a história de dois músicos mambembes que vivem em um país chamado Esbórnia, que mistura Rio Grande do Sul, com Argentina e é meio Leste Europeu. É um troço meio estranho, uma bobagem, uma mentira e uma brincadeira muito grande da nossa falta de identidade cultural. Aqui no Brasil a gente é meio esquizofrênico, meio europeu, meio africano, meio americano, meio mexicano e esta esquizofrenia está no trabalho do Tangos & Tragédias, que a gente está adaptando neste momento a duras penas, tentando trazer isso para um roteiro de ficção de 1h20, 1h30 que funcione. Um trabalho enorme.

E com a ajuda de um concurso do Santander, também estamos roteirizando um trabalho do Laerte, Cidades Piratas.

Faltou só o Glauco, então, né?

Já tem o Adão, o Laerte e o Angeli. Agora só falta mesmo o Glauco para fazer uma trilogia de quatro. (risos)