Ron Perlman entra na sala e o primeiro pensamento que vem à cabeça é pô, ele não é tão grande quanto o Hellboy. A segunda é caramba, ele É o Hellboy. O ator de 54 anos já passou por filmes grandes, pequenos, médios, foi o Fera no seriado de TV A Bela e a Fera e agora, em sua terceira colaboração com o diretor mexicano Guillermo Del Toro, ganha grande destaque na mídia. Trajando uma camisa de manga curta bem larga, jeans e um tênis, Perlman passou parte da manhã desta última terça (27/07) conversando com a imprensa. Bem humorado, apesar do fuso-horário e do cansaço depois de ter passado o dia anterior dando entrevistas às TVs, o ator falou de seus trabalhos anteriores, como foi fazer Hellboy e até mesmo imitou Bruce Willis. Confira agora os melhores momentos da entrevista:
Você é ou era um leitor de histórias em quadrinhos antes do filme? Se sim, quais são seus personagens ou títulos preferidos? Já conhecia Hellboy?
Eu não sou um leitor de quadrinhos, mas meu melhor amigo, Guillermo Del Toro, é fanático o suficiente por ele, por mim e todo mundo. (risos) O pouco que eu sei, eu peguei dele, que tem um gosto bastante diferenciado no que lê. O seu entusiasmo pelo Hellboy fez com que eu lesse tudo sobre o personagem e outros trabalhos do Mignola. Mas agora que eu fui convidado a entrar neste clube de aficionados por HQs, alguns amigos me indicaram a leitura de A liga dos cavalheiros extraordinários (The League of Extraordinary Gentlemen) e outras obras de Alan Moore, como Watchmen. Mesmo que tardia, acho que foi uma descoberta muito interessante deste mundo maravilhoso.
Você fez personagens muito diferentes entre si e em ambientes dos mais variados, da TV ao teatro. Como você escolhe seus personagens, que vão do clássico shakespeareano ao pop, como Hellboy?
Quando você está fazendo um papel, sempre espera que o personagem seja algo que valha a pena interpretar. Você quer que ele seja interessante, imprevisível e multidimensional e não apenas um personagem sem profundidade que só existe para levar as pessoas ao cinema. Um ator sempre procura algo completamente novo para poder se desafiar e, assim, passar para o seu desempenho uma energia. Estas são as coisas que você espera alcançar, mas nem sempre é possível. Muitos personagens não são muito bem planejados e o seu trabalho se torna um pouco mais difícil porque tem de desenvolver uma realidade que o escritor não criou. O que procuro em todos os personagens é a humanidade, independente se as falas foram escritas por William Shakespeare, Mike Mignola ou Guillermo Del Toro. As palavras são secundárias em relação ao comportamento e o desenvolvimento psicológico do personagem. Se você interpreta alguém que foi muito bem criado pelo escritor, seu trabalho é muito, muito mais fácil, já está praticamente tudo pronto. Em Hellboy, toda a sua personalidade, comportamento e pensamento foram feitos por Guillermo Del Toro. Foi um dos melhores desenvolvimentos de personagem que eu já vi.
Quanto tempo demorava para compor o personagem? Existia alguma dificuldade para falar ou se movimentar com a maquiagem utilizada?
Nos dias normais, eram quatro horas de maquiagem. Quando gravávamos cenas em que Hellboy aparece sem camisa, seis horas, porque aquele é mesmo o meu corpo. Pintado de vermelho, claro. [Ron dá uma olhada para o pôster atrás dele e diz:] Até que eu estou bem, né? (risos) Não era nem um pouco desconfortável. As pessoas que criaram a maquiagem fazem parte do time de Rick Baker. Eles são disparado os melhores artistas de maquiagem do mundo. Eles transformam objetos inanimados, como borracha de látex, em organismos vivos que espelham o que o ator está pensando ou sentindo. Eu nunca tive de fazer um único ajuste por causa da maquiagem. E não podemos esquecer que não importa o quanto aquilo fique bonito, a maquiagem tem de ser funcional. O ator tem de andar, falar e fazer todas as coisas que o trabalho demanda.
Você chegou a se inspirar em algum outro filme de quadrinhos para fazer o Hellboy? Você vê semelhanças entre o seu personagem e os X-Men, já que ambos são heróis que têm de agir à margem da sociedade?
Eu não precisei de inspiração externa, porque tudo o que eu precisava estava na adaptação de Guillermo. Foi o personagem mais fácil de achar da minha carreira porque desde a primeira vez que você o vê, você logo saca que ele está zoando com as coisas, tirando sarro, fazendo joguinhos. Ele tem o estranho desejo de se divertir às custas dos outros e você logo entende tudo isso e vê que ele se expressa pelo seu humor. Ele nunca está sério e nunca leva nada a sério, exceto seu relacionamento com esta garota [Liz Sherman, interpretada por Selma Blair]. E quando chega esta hora de ser sério ele age como um cachorrinho, ou um garoto de 14 anos, que é completamente oposto ao que ele é para o resto do mundo: inseguro e que não sabe o que fazer. Então, todas as dicas que eu precisava para ser Hellboy estavam lá. Entretanto, há semelhanças entre Hellboy e Vincent, de A Bela e a Fera. Ambos são forçados a viver nos subterrâneos, como os X-Men, que também são privados de uma vida normal. Eu acho que X-Men é o melhor filme baseado em história em quadrinhos que já vi. É épico, muito inteligente e tem um ótimo elenco trabalhando super bem. Então, se alguém quiser comparar X-Men com Hellboy, eu aceito com o maior prazer, pois acho que há também em Hellboy uma forma pura de se fazer cinema, inteligente e instigante.
O Guillermo Del Toro tem este projeto há bastante tempo. Você participou de todas as etapas, como por exemplo conseguir dinheiro para o projeto, etc?
Eu não ajudei muito a fazer Hellboy acontecer. Na verdade, acho que fui mais um obstáculo do que uma ajuda. Guillermo tinha colocado na sua cabeça dura que se este projeto desse certo, eu tinha que ser o Hellboy. Então, por cinco anos, ele brigou com o estúdio que tinha os direitos do filme. Eles perguntavam para ele "fale o nome de um grande astro" e ele dizia Ron Perlman, e eles falavam "fale o nome de outro astro" e ele respondia Ron Perlman. Ele podia ter feito este filme de outra maneira se seguisse o que o estúdio queria, mas lutou pelo que achava que era certo para a sua versão do filme, até que chegou uma hora que o estúdio falou "Pegue o seu projeto e saia já daqui, nós não vamos fazer este filme". E o projeto ficou com ele até que um ano e meio depois, alguém que queria trabalhar com Guillermo falou "para o bem ou para o mal, nós vamos fazer do jeito que você quer. Se você quer Ron Perlman, nós vamos fazer isso acontecer". E eu fui resguardado de tudo isso. Ele não queria me magoar dizendo que as pessoas não me queriam, então, fiquei de fora até que ele conseguiu tudo o que queria para fazer o filme do jeito dele. Eu sabia que ele estava fazendo isso desde o começo, porque quando ele conseguiu os direitos para filmar, ele me disse que num mundo perfeito, eu seria o cara certo para eles pintarem de vermelho.
Sobre Hellboy 2, há rumores de que o filme deve mesmo acontecer. Você vai participar?
Sim. Em Hellboy 2, eu vou interpretar a garota. (risos) Há uma história de que Bruce Willis está com um novo empresário e quando isso acontece, todo mundo em Hollywood presta uma atenção redobrada ao que vai acontecer. Então, alguém perguntou qual papel ele gostaria de fazer, para que eles pudessem tentar ajudá-lo, e ele respondeu [Ron Perman numa ótima imitação de Bruce Willis:] "Sabe, tem um cara vermelho que eu vi na TV, com um rabo..." então talvez Bruce Willis faça o segundo filme, vai saber. (risos) Eu adoraria voltar ao personagem, desde que eu possa correr, pular e rastejar. Eu não tenho mais muitos anos de vida, já estou com 54 anos.
Qual foi a participação do Mike Mignola no projeto? Ele ia nos sets, conversava com os atores?
Mignola esteve bastante envolvido desde a pré-produção. Ele ajudou a transformar todas aquelas idéias em coisas palpáveis. Ele desenhou os acessórios, as armas, o sobretudo e muitos dos cenários. Ele foi tão importante quanto o desenhista de produção. Foi uma ótima colaboração. Mignola nunca foi excluído e sua opinião sempre foi muito importante. Del Toro estava obcecado em deixar Mignola feliz durante todo o processo. Mignola estava em Praga quando filmamos. Ele ficava sentado com Guillermo no monitor e os dois ficavam um tempão discutindo cada cena. Um diferencial é que o filme é uma homenagem a Mignola. Ele queria mostrar ao mundo porque o Mignola é um artista importante de HQs e como ele poderia ser louvado também no cinema.
Quando o filme estava sendo lançado nos Estados Unidos, diversos veículos de lá disseram que você está ultrapassando Kevin Bacon em número de personagens coadjuvantes. Com Hellboy, você foi lançado também como ator principal. Fale um pouco destas diferenças e dos personagens que já fez em filmes de Jean-Jacques Annaud, Jean-Pierre Jeunet, etc.
Eu realmente amo atuar. Eu tenho uma ótima carreira porque tive vários episódios que trouxeram para a superfície o que há de melhor em mim. Há três cineastas com quem trabalhei várias vezes e que vêem em mim uma força estranha e distorcida que eles gostam de usar nos seus filmes. São eles Jean-Pierre Jeunet [A cidade das crianças perdidas e Alien - A ressurreição], Jean-Jacques Annaud [O nome da Rosa, A guerra do fogo e Círculo de fogo] e Guillermo Del Toro, com quem já fiz três filmes [Cronos, Blade II e Hellboy]. Eu nunca me preparei para o estrelato. Eu me encaro como um ator de personagens, que é o tipo de profissional que na melhor das hipóteses é o melhor amigo do protagonista, ou o policial que está investigando algo que o ator principal fez. E eu tomei esta posição porque logo percebi que Hollywood não ia me transformar numa estrela de cinema. O melhor que eu podia esperar era trabalhar com grandes profissionais, em papéis interessantes e em filmes bem intencionados. Se eu gosto de ser o ator principal? Sim! (risos) É muito bom saber que tem bastante gente prestando atenção no que eu fiz. Ao mesmo tempo, foi um bom teste porque você nunca sabe como vai reagir quando uma pessoa bate no seu ombro e diz "ok, agora é a sua vez". Foi uma experiência ótima e uma coisa que me ajudou muito foi a qualidade do Hellboy, que era um personagem diferenciado. Foi o momento certo de me bateram no ombro, porque era o típico personagem que eu interpreto, mas no papel principal. Se eu consegui ou não cumprir com tudo isso, é o mundo que vai decidir. Da minha parte, foi fantástico.
Faça uma comparação entre os três diretores que você citou e o cinema fantástico que eles costumam criar e com você, ator.
Estes três têm umas características em comum. Eles têm o coração de uma pessoa de 15 anos, por isso, eles têm uma forma bela e inocente de ver monstros, gárgulas, duendes e outras coisas que são supernaturais e fantásticas. Outra coisa que eles têm é esta curiosidade insaciável, este prazer em saber mais, experimentar coisas novas e fazer o que nem sempre é lógico e racional. Cada um deles se expressa de uma maneira, as paletas de cores com que pintam são diferentes. E são apaixonados por fazer filmes. E pelos motivos certos. Eles não estão nessa para conseguir uma mansão em Malibu, mas sim para emocionar o público, deixar todos no cinema surpresos. Eles fazem porque gostam. E eles adoram quando você os surpreende, quando você pensa em algo, ou se comporta de um jeito diferente, que eles não tinham pensado antes, mas que se encaixa no que está sendo feito naquele momento. Me sinto muito feliz de ter trabalhado com estes três. Eles são grandes guerreiros de corações puros.
Eu notei que há uma auto-referência de Del Toro ao seu Espinha do Diabo (El Espinazo del Diablo - 2001) em uma cena dentro do Bureau que ele mostra o mesmo feto que aparece neste outro filme dele. Você pode citar outras brincadeiras deste tipo que ele colocou no filme?
Tenho certeza que tem muita coisa, porque Guillermo é meio Hitchcock neste ponto. Por exemplo, em Blade II, tem um personagem chamado Scud (Norman Reedus) que está o tempo todo usando uma camiseta com a sigla B.P.R.D., que é Bureau for Paranormal Research and Defense (Bureau de Pesquisa e Defesa Paranormal) - a organização para qual o Hellboy trabalha. Sempre tem também uma cena de autópsia em todos os filmes dele, mesmo quando não tem nada a ver, ele arranja uma forma, porque ele é obcecado em mostrar monstros, cadáveres e corpos abertos. E em Cronos (1993), o primeiro filme do Del Toro, o dispositivo Cronos - "que garante ao usuário vida eterna" - está escondido em um Arcanjo. Este arcanjo está em TODOS os filmes dele. Ele é obcecado com estas figuras e com a justaposição de um elemento diabólico com outro puro, angelical. Esta linha tênue de anjos e demônios é algo que ele gosta muito de explorar. Você vê isso também no trabalho de Dan Brown, O código Da Vinci.