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Dia do Dublador 2024 é marcado por preocupações com o avanço da IA

Tecnologia ameaça substituir profissionais da dublagem no Brasil

Pedrinho
29.06.2024, às 12H00.

“Não podemos nos desesperar”. O futuro da inteligência artificial e seu impacto na sociedade é um debate antigo na cultura pop. Desde os anos 1980, vários livros, filmes e gibis abordam o avanço dessa tecnologia. Em 2024, podemos dizer que esse futuro já começou. Os avanços da IA estão revirando mercados e, no Brasil, preocupando diretamente artistas e dubladores. Por esses e outros motivos, o Dia do Dublador, comemorado neste sábado (29), tem um peso diferente.

Com cada vez mais programas generativos, profissionais da área da dublagem se sentem lesados e temem um futuro onde máquinas darão vida e voz a muitos personagens. Uma simples pesquisa no Google retorna com o link de diversas plataformas de inteligência artificial para dublagem. “Melhor gerador de voz”, “ferramentas de localização (termo utilizado para tradução de conteúdos estrangeiros em um país)” e “melhor dublagem para vídeo” são algumas das promessas contidas nos anúncios.

Mas o que fazem essas IAs afinal? Segundo a Google Cloud, uma inteligência artificial generativa “usa um modelo de ML (sigla para aprendizagem de máquina) para aprender os padrões e as relações em um conjunto de dados de conteúdo criado por humanos. Em seguida, ele usa os padrões aprendidos para gerar novo conteúdo”. Ou seja, após analisar a voz de uma pessoa, essas máquinas podem reproduzi-las em novas falas, incluindo conteúdos nunca ditos de verdade.

Ao circular pelas redes sociais, especialmente às com ênfase em vídeo, como Instagram e TikTok, é comum encontrar vídeos que recriam ou inventam cenas com alguns personagens marcantes da cultura pop. Indo além, entrevistas e cenas são redubladas com outros contextos envolvendo piadas e memes da época. A brincadeira, saudável por muitos pontos de vista, envolve a recriação da voz dos personagens ou artistas com o uso da inteligência artificial, apontando para um futuro perigoso, onde os empregos dos dubladores podem estar ameaçados.

Para o experiente dublador, diretor de dublagem e empresário Wendel Bezerra, voz de Goku, Bob Esponja, Jackie Chan e Robert Pattinson, vale a brincadeira, mas não descarta a ajuda dos fãs na luta contra possíveis ameaças. “Particularmente, [acho que o] pessoal que faz música, vídeo e coisa ligada a humor, engraçado e divertido, não vejo um problema. [A IA] é uma ferramenta que a internet nos trouxe, a modernidade trouxe, e que vale a pena brincar”, diz Wendel ao Omelete.

Em entrevistas anteriores, o dublador estimou que haja cerca de 600 dubladores no eixo Rio-SP e agora acredita que o público desses profissionais pode ajudar na luta por mais direitos e proteção dos empregos. “A Dublagem Viva, que é o movimento dos dubladores no Brasil, está em busca dessa regulamentação, de defender os direitos dos atores de voz”, explica.

Uma das principais campanhas dos dubladores, a Dublagem Viva, citada por Bezerra, defende a proteção dos profissionais de voz contra a tecnologia. Em uma carta manifesto no site da campanha, o grupo alega que “a inteligência artificial generativa cresce e avança a passos largos em direção a uma ruptura social. Essa substituição criaria uma estrutura onde o humano seria trocado por uma inteligência artificial generativa, mas esta nunca seria equivalente à experiência criativa real humana” — você encontra o texto na íntegra aqui.

Alerta de Risco

O dublador e diretor de dublagem André Rinaldi, que comandou a versão brasileira de Solo Leveling e outros animes, diz ao Omelete que a primeira coisa a se fazer sobre o avanço da IA é não se desesperar. “A tecnologia está aí, ela está chegando e sendo usada. O que a gente precisa é pensar em uma regulamentação e como ela [IA] vai afetar o nosso mercado. Não só para dubladores, mas tradutores e técnicos também.”

Na prática, ainda não se enfrentou nenhuma situação de uso indevido de voz no Brasil em grandes estúdios e plataformas, porém, já houve ocasiões em que a classe dos dubladores se viu desrespeitada. Um exemplo recente envolve a série documental Rio-Paris — A Tragédia do voo 447, do Globoplay. Na versão brasileira, a empresa optou por dublar um dos personagens com IA, mantendo a voz original, mas o idioma em português, ou seja, substituiu o trabalho de um dublador pelo uso de uma máquina. Porém, ainda em maio deste ano, a Dublagem Viva divulgou uma lista de empresas que teriam se comprometido com uma cláusula de proteção contra IA, mas não deixou claro o nível de validade jurídica desse acordo.

Em casos em que o problema envolve violação de direitos autorais, Wendel Bezerra tem experiência. O dublador conhece bem os riscos de ter a voz roubada e já teve que resolver judicialmente. “Em compensação [ao uso recreativo], tem gente que utiliza [a IA] para tentar ganhar dinheiro, fazer locuções, audiobook, para vender pras pessoas. Eu já processei algumas pessoas por isso, e ganhei. Derrubei sites e tal, porque aí [usar a voz de outra pessoa comercialmente] eu já acho desonesto. É um crime”.

Uma das possíveis medidas para impedir o avanço desenfreado da tecnologia pode ser um PL que tramita na Câmara dos Deputados desde maio de 2022. O projeto 1376/2022, de autoria do deputado Pedro Paulo (PSD/RJ), determina que dublagens e legendagens para a língua portuguesa de obras audiovisuais produzidas originalmente em idioma estrangeiro sejam realizadas por empresas sediadas no Brasil e por profissionais com residência no Brasil. Ou seja, isso barraria parte dos avanços da IA, como no caso Rio-Paris. Entretanto, esse mesmo PL foi retirado de pauta na Comissão de Comunicação em abril deste ano, sem previsão de ser novamente discutido.

Rinaldi considera que o projeto de lei do social-democrata “é um caminho”. “Essa PL ainda vai sofrer alterações, e na minha opinião ela precisa abarcar outras questões dentro do nosso mercado. E a gente precisa ouvir a população, o que o povo brasileiro quer”, afirma. Já para Wendel, é importante que os trabalhos de localização sejam feitos em território nacional.

Segundo Bezerra, o projeto da câmara dos deputados “é bom pro mercado, pros atores e é bom até pro governo, de certa forma, porque geraria impostos. Pensando do ponto de vista do público, que é o consumidor final, você garante mais qualidade”. Defensor do uso recreativo da IA generativa, ele acrescenta que “regulamentar não é proibir a utilização, mas estabelecer limites” e evitar que “todo um ecossistema profissional” seja prejudicado.

Esses relatos levam a refletir sobre a importância humana da linguagem e da localização. A língua é viva e está em constante mudança. Se hoje, muitas produções são virais e marcantes para o público brasileiro, muito se deve ao trabalho dos dubladores e essa profissão, como todas as outras, precisa de regulamentações modernas e alinhadas com os avanços da sociedade. Entender contextos e encontrar expressões que combinem com cada personagem é uma tarefa profissional e humana que não pode ser substituída por máquinas.