Reza o lenga-lenga da nerdice moderna que “um herói só é tão bom quanto seu vilão”, mas de onde - e de quando - vem essa equalização, exatamente? Caso alguém ainda mencione, hoje em dia, o nome do Imperador Ming, principal adversário de Flash Gordon nas HQs e nas telas, é para problematizá-lo como caricatura orientalista. Buck Rogers enfrentava a Princesa Ardala (quem?), Tarzan lutava contra exploradores frequentemente anônimos, e - honestamente? - nem Indiana Jones achou nazistas muito marcantes para esmurrar durante seus cinco filmes.
Essa ideia de que o vilão precisa ser tão marcante quanto herói vem, eu suspeito, de uma era dos quadrinhos estadunidenses em que a mídia buscou se legitimar aos olhos do público geral (e de uma seção tóxica do público de nicho) através de uma tendência ao sombrio, palavra consistentemente confundida com “complexo” no vernáculo da pseudo-intelectualidade. Daí que o Coringa virou prioridade nº1 em muitas revistas do Batman, ícone cultural comparável até ao próprio Homem-Morcego, e que o Lex Luthor se tornou “o espelho do Superman”, e não só um bilionário megalomaníaco qualquer.
Justo: algumas histórias são, mesmo, sobre seus vilões. Christopher Nolan construiu toda uma elegia ao caos moral do Coringa em seu Batman: O Cavaleiro das Trevas, um filme que pouco fala realmente sobre o Batman, e o resultado é merecidamente um dos longas de super-herói mais aclamados de todos os tempos. Pantera Negra encontrou em seu Killmonger toda a potência discursiva que faltava ao personagem-título quando ele estava sozinho (e se não fosse o brilhantismo iconográfico de Chadwick Boseman, é claro).
Nem todas as histórias são assim, no entanto, e elas não precisam ser para funcionar. O que nos leva a As Marvels, porque uma fatia considerável dos críticos do longaencontrou em Dar-Benn (Zawe Ashton), a líder Kree que entra em conflito com Carol (Brie Larson), Kamala (Iman Vellani) e Monica (Teyonah Parris) na trama, um alvo fácil para legitimar sua percepção negativa do roteiro. É uma vilã inconsequente, diz o tuíte ou comentário médio dos detratores do filme, e a interpretação melodramática de Ashton não convence.
(Ou pelo menos era isso que eles realmente queriam dizer, não que ela ganhou o emprego por ser noiva de Tom Hiddelston… certo? Ninguém jamais seria tão obviamente machista assim, né? Tem que disfarçar pelo menos!)
Inconsequente, no vocabulário viciado em plot do fã do MCU, é código para dizer que o roteiro de As Marvels não investe muito tempo ou carga dramática na história de Dar-Benn, mantendo-a bastante simples: guerreira Kree testemunhou em primeira mão as consequências brutais da intervenção de Carol no império, escalou a hierarquia de poder e decidiu unir o útil ao agradável em seu plano de dominação intergaláctica, sugando recursos naturais de planetas que têm significância emocional para a Capitã Marvel.
Em um sentido puramente interpretativo, Ashton faz de Dar-Benn exatamente o que está no papel: uma líder de dedicação e pragmatismo inflexíveis, mas também uma guerreira cruel em busca de vingança - quanto mais dolorosa, melhor. Toda sorrisos de esguelha (que exibem seus dentes metálicos, uma visão invariavelmente inquietante) e olhares triunfantes, ela brinca com os clichês do vilão desvairado ao estilo Coringa sem se entregar totalmente a eles. Dar-Benn não é uma agente do caos, mas ela certamente está se divertindo com a dor que causa.
Eu a considerei um deleite de se assistir, mas entendo que a minha experiência não tenha sido a de todo mundo. Julgar o valor da performance de Ashton é a parte mais subjetiva dessa conversa, mas me parece indiscutível que existe um desajuste de expectativas em relação à forma como contadores de histórias de super-heróis utilizam seus vilões e como o público passou a esperar que eles sejam utilizados. Porque, às vezes, o vilão é "só" um pretexto para colocar o herói em ação, confrontá-lo com dilemas que não existiriam de outra forma, forçar uma junção de narrativas como a que acontece entre as protagonistas de As Marvels, obrigar essa interação a empurrar o arco de cada uma delas adiante.
Para isso, o vilão precisa só de duas coisas: uma motivação crível, e bastante estilo. Ninguém merece, afinal, um antagonista entediante - você prefere o fanatismo religioso genérico de Kaecillius (Mads Mikkelsen) em Doutor Estranho, ou a crueldade corporativa folhetinesca de Darren Cross (Corey Stoll) em Homem-Formiga? A aura de nerd transformado em garanhão de Aldrich Killian (Guy Pearce) em Homem de Ferro 3, ou o robô assassino com entonação shakespeariana Ultron (James Spader) em Vingadores 2? Nenhum desses vilões é consequente, eu sei, mas qual foi que te divertiu mais?
Fazer as pazes com o fato de que a história do vilão não precisa ser tão importante quanto a do herói - afinal, Joseph Campbell não dizia muita coisa sobre a jornada do vilão, dizia? - é um passo pequeno para o crítico de As Marvels, mas um pulo gigantesco para um público de filme de herói que caminha a largos passos para se tornar muito parecido com aquele que consumia quadrinhos lá nos anos 1970 e 1980, e cuja influência perdura de maneira irritante até hoje. Trata-se de um público que só sabe ver qualidade (mais até do que isso, validade) em um tipo de história delimitado por bastiões cada vez mais estreitos de tom, estrutura e protagonismo.
Às vezes, um vilão é só um vilão. E - eu prometo - está tudo bem.