Apesar de ter uma heroína como protagonista, seria difícil argumentar que questões de gênero são um dos temas principais de WandaVision, já que o fato de Wanda Maximoff (Elizabeth Olsen) ser mulher praticamente não é uma questão, é algo que simplesmente está lá. Como fica claro no episódio final, a verdadeira jornada da minissérie tem a ver com o processo de luto vivido pela personagem, mas isso não quer dizer que o arco da heroína não traga um complexo e cuidadoso (e sutil) debate sobre gênero. Ao abordar o tema do luto, a showrunner Jac Schaeffer conseguiu avançar mais na representação de mulheres do que produções que são deliberadamente sobre empoderamento feminino, seja lá o que essa expressão batida signifique para Hollywood hoje em dia.
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Capitã Marvel (2019), por exemplo, é praticamente um curso express de feminismo básico, uma metáfora nada sutil para o processo de empoderamento feminino: Danvers é a garota que ouviu a vida toda que não deveria se arriscar a fazer coisas “masculinas”, como pilotar um caça, e, mesmo depois de ganhar superpoderes, passa boa parte do filme ouvindo que precisa aprender a controlar suas emoções (para não nos deixar esquecer do clichê machista de que mulheres são controladas pela emoção, enquanto os homens dominam a razão), e só no final entende que seus sentimentos e sua intuição são dons, não defeitos, e essa é a chave para que ela consiga usar seus poderes ao máximo. Na ânsia de responder ao sucesso de Mulher-Maravilha e de vender seu filme como mais feminista que o da concorrência, a Marvel trocou um clichê por outro e perdeu a oportunidade de dar uma jornada mais verdadeira e original para a personagem.
E é isso exatamente o que WandaVision subverte. Nos primeiros episódios, especialmente depois que fica claro que Wanda criou uma realidade alternativa baseada em sitcoms para viver com Visão (Paul Bettany) a vida de que Thanos a privou ao matar o sintozóide em Vingadores: Guerra Infinita, parecemos estar diante do velho e batido clichê da “mulher louca”, que Hollywood não se cansa de repetir.
A receita é simples: abalada por um grande trauma ou decepção, a personagem perde o controle de suas emoções e se desliga da realidade, transformando-se em vilã, uma ameaça ao status quo. E, ao contrário do que acontece com os anti-heróis masculinos, os motivos que a levam por esse caminho (muitas vezes relacionados a rígidos papéis de gênero ou a sofrimentos causados por homens) raramente são explorados, desencorajando qualquer empatia por parte dos espectadores. Temos visto esse clichê ser reciclado desde os primórdios do cinema, no que ficou conhecido como “woman’s film”, e ao longo da história de Hollywood, em produções como Um Bonde Chamado Desejo (1951), Atração Fatal (1987), Blue Jasmine (2013), Garota Exemplar (2014) e até no arco da Arlequina em Esquadrão Suicida (2016). Mas WandaVision nos joga nessa direção só para mostrar como é possível contar histórias muito melhores ao deixar de lado esse clichê.
Marvel/Reprodução
A reencenação da estrutura de sitcoms clássicas é um recurso particularmente sutil e inteligente para alcançar esse efeito. Surgido nos anos 1940, esse tipo de comédia televisiva foi um dos principais responsáveis por criar uma imagem de família perfeita norte-americana que perdura até hoje, centrada em mulheres com um papel muito específico de mães, esposas e donas de casa. Programas como I Love Lucy (referenciada no primeiro episódio de WandaVision) davam protagonismo para as personagens femininas, mas apoiavam seu humor justamente no modo como essas mulheres falhavam em desempenhar o papel de mãe-esposa-dona-de-casa perfeita e em reproduzir o status quo. Já A Feiticeira e Jeannie É um Jeito têm protagonistas que são uma variação menos assustadora da “mulher louca”, mas cujos poderes imprevisíveis são uma metáfora bastante literal para a rebelião feminina dos anos 1960 e 1970 (a chamada segunda onda do feminismo) e para a crescente ansiedade masculina sobre o que aconteceria com eles diante da “mulher moderna”.
Transformar Wanda nessas personagens enquanto tenta elaborar seu luto explicita - intencionalmente ou não - a artificialidade desses papéis de gênero e de suas representações televisivas (é tudo sempre uma grande encenação, algo insustentável na realidade). Além disso, é um modo bastante interessante de sermos introduzidos ao processo que a heroína está vivendo internamente, por meio de uma metáfora visual para algo que se dá na mente dela, e que também indica que, desta vez, os acontecimentos e emoções que levaram a personagem a se desconectar da realidade vão ser profundamente explorados.
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E aqui chegamos ao grande diferencial de WandaVision, a grande subversão do clichê da “mulher louca”: o desenvolvimento de Wanda é tratado com o respeito e a complexidade normalmente reservados apenas aos heróis (ou anti-heróis) masculinos. Somos levados a criar empatia até com sociopatas e psicopatas como Hannibal e Norman Bates (para citar dois anti-heróis do cinema reciclados recentemente pela TV), mas quantas personagens femininas têm o mesmo tratamento?
Não que Wanda seja uma sociopata ou psicopata - e não é à toa que o personagem que sugere isso, o diretor da E.S.P.A.D.A. Tyler Hayward (Josh Stamberg), acabe sendo um dos vilões da série - mas sim algo mais próximo de uma anti-heroína. Ainda assim, a desconstrução do clichê da “mulher louca” está principalmente no fato de a série nos apontar nessa direção, mas permitir que a heroína se redima no último episódio, quando tem que escolher entre viver a vida que sonhou (e criou) com Visão e os dois filhos, ou libertar os habitantes de Westview do sofrimento que é interpretar os papéis de sua sitcom. Ao escolher a segunda opção, Wanda completa sua jornada de heroína e seu processo emocional interno: ela escapa da armadilha da melancolia (a incapacidade de se desligar de um objeto amado perdido), que causa grande sofrimento e poderia transformá-la em vilã, e supera a perda de interesse pelo mundo externo, característica do luto, completando os estágios que levam da negação à aceitação - com muitos efeitos especiais e batalhas épicas, claro, porque ainda se trata de uma produção da Marvel.
Ao oferecer esse desenvolvimento para a personagem e trabalhar de forma meticulosa, mas sutil, para desconstruir um clichê machista, Jac Schaeffer já fez mais pelas mulheres do que aqueles em Hollywood que buscaram tratar de questões relacionadas à representação feminina de modo mais intencional, mas muito didático. Resta esperar que a segunda cena pós-crédito não seja um indicativo de que Doctor Strange in the Multiverse of Madness vai desfazer esse belo trabalho e transformar a Feiticeira Escarlate em vilã. Francamente, Marvel, nós já vimos isso antes (inclusive nos quadrinhos), e não aguentamos mais.
Marvel/Divulgação