Quando Kendrick Lamar lançou “Not Like Us” – sua volta olímpica eufórica após essencialmente vencer a treta contra Drake no dia anterior com a assombrada “meet the grahams” – a repercussão foi, corretamente, dominada pelas tiradas do rapper de Compton contra o rival canadense; linhas agora eternizadas como “Certified Lover Boy? / Certified pedophiles” e “Tryna strike a chord / and it's probably A minor.”
Mas há um outro lado para a música. Algo que ficou mais claro quando ele juntou gangues rivais, astros de basquete e outros nomes da música no palco do seu show especial de Juneteenth, assim como no clipe de “Not Like Us.” Esse também é um hino sobre Los Angeles, e um reavivamento cultural na cidade depois dos anos de pandemia. Nas palavras de Kendrick: “City is back up, it's a must, we outside.” É hora de sair de casa e festejar.
Esse espírito infecta tudo em GNX, álbum lançado por Lamar de surpresa na última sexta-feira (22). Não é um acidente que as primeiras vozes que ouvimos em “wacced out murals” representam a comunidade latina da cidade, povo por quem K-Dot tem grande admiração. Aqui e ali, voltamos a ouvir as notas de Deyra Barrera, a cantora de mariachi com quem ele colabora ao longo do disco, mas os vislumbres de Los Angeles não param por aí. Não são só referências a Kobe Bryant, aos Dodgers do baseball, às gangues Crips e Bloods ou a presença de outros rappers da costa oeste dos EUA. Não é um exagero dizer que a cidade está no DNA do álbum.
Isso, claro, é verdade em toda a discografia de Kendrick Lamar, mas GNX leva a conexão do rapper com a metrópole, e em especial seu histórico musical, a outro patamar, aém de ser uma de suas obras mais acessíveis – uma aparente resposta às críticas de que ele faz músicas para serem dissecadas, e não curtidas nas festas da cidade. Ajuda ter Jack Antonoff na produção. Basta olhar para “squabble up” – uma música cujo título é uma expressão local para lutar, ou dançar – e a energia pulsante da trilha, onde Lamar também nos lembra sua capacidade cômica na pronúncia de “I feel good, get the fuck out my faaaace / Look good, but she don't got no taaaaaste.”
Semelhantemente, “tv off” parece estar ali primariamente para dar a quem gostou de “Not Like Us” outro exemplo da colaboração elétrica de Lamar e Mustard, cujas batidas continuam a elevar a energia das letras de Lamar. Não à toa DJ recebe não só uma, mas duas chamadas hilárias de Lamar, que grita “Mustaaaaaaard” quase como quem não acredita na criatividade de seu parceiro.
Falando em colaboradores, SZA retorna para as faixas mais românticas de GNX, e “luther” eleva o trabalho feito pelos dois em lançamentos anteriores como “All the Stars” e conta com algumas das melhores poesias do CD. Aliás, não é preciso dizer, mas a profundidade, elasticidade e imprevisibilidade das letras seguem sendo o maior atrativo de Kendrick Lamar.
Não há melhor exemplo disso do que a melhor música do álbum, uma faixa predestinada a disputar por espaços nos Top 10 do rapper daqui pra frente. Em “reincarnated”, Kendrick usa samples de 2pac para, em suas palavras, reescrever a história do diabo sendo expulso do céu como uma série de vidas em cantores negros (provavelmente inspirados por John Lee Hooker e Dinah Washington) que foram expulsos de casa, fizeram sucesso mas morreram devido ao excesso.
Os tons de blues e o histórico do gênero, chamado de “música do diabo” por racistas no Século 20, aprofundam o significado de uma música sobre o peso de um legado que agora recai sobre Lamar. Puxar 2pac, especialmente depois que Drake ousou “revivê-lo” com IA durante a treta, aponta para isso, assim como a dinâmica pai e filho que termina com uma conversa entre Kendrick e Deus, onde o divino mostra ao rapper a necessidade de buscar paz em sua cidade, de viver de maneira humilde e cuidar de seu povo. Ele não foi expulso para ser punido, mas aprender que não pode morrer como nas vidas anteriores.
As camadas não param, mas a mensagem é uma só. Em “man at the garden” Kendrick fala que merece tudo que recebeu, e em “hey now” grita que é importante demais. Olhando seu 2024, é difícil discordar, mas ele está mais do que ciente do que representa para Los Angeles, e da necessidade e responsabilidade que vêm com a coroa.
Não é um acidente que “heart part 6”, a mais nova numa série de músicas autobiográficas, Kendrick Lamar narra toda sua carreira profissional e termina com conselhos para os mais novos. Se um dia ele era o good kid de m.A.A.d city, se DAMN foi sua ascensão ao topo do jogo, GNX é a reflexão – divertida, empolgante e surpreendentemente fácil de ouvir – sobre o que é ser alguém capaz de incendiar o mundo da música como ele fez esse ano ao dizer “Motherfuck the big three / it's just big me.”