Reprodução/Facebook (arte: Wikimetal)

Música

É possível separar a arte do artista? Exemplos e o que eles têm a nos dizer

O que você faz quando um músico que você admira se torna problemático?

03.11.2022, às 17H08.

Texto por Erica Y Roumieh

O que você faz quando um artista que você admira se torna problemático? Quando ele ou ela passa dos limites e toma atitudes polêmicas? Ou quando dezenas de pessoas confessam ter sofrido abusos físicos e psicológicos? Ou quando o artista aparece em um show fazendo saudações nazistas? Nesses casos, o fã precisa enfrentar a cruel verdade sobre aqueles que colocou em um pedestal.

A lista de músicos com atitudes e discursos perigosos, infelizmente, é extensa. Um dos casos mais fortes e recentes para os fãs de heavy metal, por exemplo, é o de Marilyn Manson. O músico foi acusado de violência doméstica, abuso emocional e sexual e tráfico humano, entre outros crimes, por diversas mulheres. Entre as supostas vítimas e acusadoras estão Evan Rachel Wood,Esmé Bianco e a ex-assistente Ashley Waters.

A investigação do caso traçou um histórico de abusos contra as mulheres desde antes da fama, a começar pela violência física e verbal cometidas contra a própria mãe, Barbara,perseguição contra as primeiras namoradas. Já em carreira musical, desde os primeiros shows, Manson agredia mulheres no palco como forma de show performático e produzia pornografia das fãs com as quais se relacionava nos bastidores, colecionando material gráfico e perturbador de dezenas delas.

Além da misoginia, investigações também deram ênfase aos supostos comportamentos racistas por parte de Brian Warner (nome de nascença do músico), desde o uso de injúrias raciais no vocabulário cotidiano até a obsessão por artefatos nazistas, com símbolos de suásticas e supostamente armas reais usadas pelo exército alemão na Segunda Guerra.

De acordo com os relatos de supostas vítimas durante os processos contra Warner, esses objetos nazistas eram usados para torturar mulheres durante abusos sexuais e brigas. Acusações como essa surgiram em massa após a declaração de Evan Rachel Wood e Manson apenas negou ter prejudicado a atriz e outras mulheres da forma dita por elas.

Marilyn Manson, hoje com 53 anos, tem mais de três décadas na indústria musical. Já lançou 11 álbuns de estúdio e até dois anos atrás suas atitudes suspeitas passaram despercebidas pelos colegas e fãs. Muitos alegam que não acreditavam que toda performance pudesse ser real. Outros se calam, seja por cumplicidade ou medo de serem prejudicados no processo da denúncia.

A mesma coisa é dita por aqueles que apoiam Phil Anselmo, vocalista do Pantera, Down, Scour e mais. Em janeiro de 2016, durante Dimebash, um evento beneficente anual que reúne grandes músicos em memória ao seu ex-colega de Pantera, Dimebag Darrel Abbott, Anselmo fez um gesto nazista e gritou “White Power”, um slogan do movimento de supremacia branca.

Poucas horas depois do vídeo ser disponibilizado online, Anselmo, sob o nome da Housecore Records, postou uma resposta a respeito da crescente controvérsia. Afirmando “nenhum pedido de desculpas virá de mim”, ele insistiu que estava apenas brincando, que se tratava de uma “piada interna”, em referência aos músicos presentes no evento estarem bebendo vinho branco, e concluiu: “Alguns de vocês precisam ser mais casca grossa”.

Atualmente, o músico se prepara para um tributo ao Pantera ao lado de Rex Brown (baixo) e os colegas Zakk Wylde (guitarra) e Charlie Benante (bateria), que vão assumir o posto que foi de Dimebag Darrell Abbott e Vincent Vinnie Paul Abbott, respectivamente. A turnê terá início na América Latina com o Knotfest e alguns shows à parte e depois partirá para os Estados Unidos. O interesse do público tem sido misto. Muitos acham que, além de não fazer sentido chamar o grupo de Pantera quando os irmãos Abbott não estão mais vivos, os comentários racistas de Anselmo não são justificáveis. Ao mesmo tempo, muitos acreditam que as crenças e ideais de Anselmo não deveriam atrapalhar seu trabalho na música e muito menos com o Pantera, uma banda tão reverenciada no heavy metal.

Outro caso de racismo é de Eric ClaptonEm agosto de 1976, durante um show em Birmingham, o astro do rock deu uma declaração pública de apoio ao ex-ministro conservador Enoch Powell, que sustentava um discurso profundamente anti-imigrante. Na ocasião, Clapton teria dito que o Reino Unido estava “superpovoado” e que os britânicos deveriam votar em Powell para que o país não se transformasse em uma “colônia negra”. O guitarrista teria afirmado que a solução seria “se livrar dos estrangeiros, dos pretos e dos crioulos” e em seguida começado a entoar repetidamente o slogan da Frente Nacional Britânica: “Mantenha a Grã-Bretanha branca.”

Infelizmente esse caso ainda soma a um discurso negacionista em que Clapton revelou ter sofrido “desastrosas” reações à vacina contra covid-19. E ainda criticou a “propaganda” por exagerar a segurança da vacina. As informações e críticas foram publicadas em uma carta que ele enviou a um ativista anti-lockdown.

Anteriormente, Clapton havia compartilhado suas ideias sobre o lockdown quando participou da música anti-quarentena de Van Morrison, “Stand and Deliver”, em dezembro de 2020. Dois meses depois, o guitarrista tomou a primeira dose da vacina AstraZeneca. Em agosto de 2021, Clapton lançou uma nova música com letra antivacina, “This Has Gotta Stop”. A canção não cita o covid-19 diretamente, mas traz frases como: “Eu não aguento mais essa bobagem / Já foi longe demais / Você quer reivindicar minha alma / Você vai precisar vir aqui e derrubar minha porta”.

O alcance que Eric Clapton tem sobre o público torna preocupante o ensinamento e estímulo que oferece. Fãs que enxergam em seus ídolos não apenas músicos, mas também exemplos a serem seguidos, podem cair em uma armadilha de desinformação e ódio.

Outro grande exemplo de como deixamos alguns artistas passarem imune a algumas atitudes imperdoáveis é Elvis Presley e a apropriação cultural de suas músicas tiradas de artistas negros como Chuck Berry e Big Mama Thornton. Segundo biógrafos, Presley era ainda problemático em sua vida pessoal. Ele gostava de namorar meninas menores de idade e até tinha "uma obsessão por sexo e meninas virgens".

Há também Jerry Lee Lewis, falecido no último dia 28 de outubro, e citado como "lenda do rock" ou "pioneiro do rock" ao lado de Elvis em quase todas as manchetes, enquanto é de conhecimento público que Lewis casou com sua prima de 13 anos quando tinha 22. Na época, o músico perdeu diversos contratos e shows e foi rejeitado pela indústria, mas dois anos depois estava de volta aos palcos e rádios, dando continuidade ao seu sucesso. Mais tarde, duas de suas esposas viriam a falecer de forma misteriosa e os casos nunca foram desvendados.

Com casos como estes em mente, um estudo conduzido pela TickPick, compartilhado pelo MetalSucks, buscou responder se fãs de heavy metal são capazes de separar a arte do artista. O estudo baseou-se em mais de mil entrevistas com fãs de música nos Estados Unidos, classificando os resultados por categorias de idade e gênero musical favorito.

O resultado mostrou que dois em cada três fãs acreditam na impossibilidade de fazer essa separação – e mais da metade dos entrevistados parou de ouvir algum artista em 2021 por causa de comportamentos controversos. 

Os resultados entre headbangers e roqueiros são parecidos: 62% dos fãs de heavy metal ouvidos na pesquisa concordam que é impossível separar a arte do artista, colocando dois músicos do metal no ranking de quem mais perdeu fãs em 2021 (Marilyn Manson e David Ellefson). No caso dos fãs de rock, a porcentagem é de 61%. Os menos inclinados a concordar são os apreciadores de grunge e indie rock, com 58% e 52%, respectivamente.

Voltando aos resultados gerais, a maior parte do público discorda da cultura do cancelamento. Ainda assim, 42% dos entrevistados acreditam que é importante parar de apoiar músicos com falas ou atitudes problemáticas, enquanto 51% pondera que depende da situação.

Para muitos, a chave para encontrar a resposta é exatamente essa: cada situação é única. Um estupro é inaceitável e o artista precisa enfrentar as consequências do ato, porém uma fala negacionista é direito do músico. Sua opinião e seu direito de se expressar devem ser respeitados. Outros acreditam que a resposta é mais complicada que isso.

O que tudo isso nos diz? Um padrão em todos esses casos revela que artistas com carreira consagrada e legiões de fãs tornam-se imunes a qualquer tipo de acusação. Outro lado importante de ser destacado é a falta de mulheres nesta lista. Isso se deve ao fato de a pesquisa para a matéria não ter encontrado denúncias graves como as citadas aqui contra mulheres artistas.

Mas por que somos incapazes de negar a arte de artistas abusadores, racistas, estupradores? A sua arte é tão mais importante do que as vidas de suas vítimas? Queremos fazer parte do público que dá palco para um ser capaz de tanta transgressão?

É claro que não há resposta para essas perguntas, mas a discussão gera uma auto-consciência importantíssima para o debate. Até que ponto a arte que você admira, que te faz bem, tem permissão para ferir outra pessoa?

PARA OUVIR

O episódio #351 do podcast do Wikimetal traz casos de Eric Clapton, David Ellefson e Marilyn Manson, além de opiniões dos nossos seguidores. O episódio conta com Daniel Dystyler (co-fundador do Wikimetal), Gabriela Marqueti (repórter) e Pedro Tiepolo (label manager) para discutir se existe uma resposta para o dilema de separar a arte do artista.

O podcast está disponível noSpotify eDeezer, mas você também pode ver o time do Wikimetalgravando o episódio no YouTube em vídeo. Todas as músicas que tocam no episódio estão em nossa playlist especial, também disponível no Spotify e Deezer.

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Knotfest, festival idealizado pelo Slipknot, finalmente terá sua primeira edição no Brasil. O evento acontecerá no dia 18 de dezembro no Sambódromo do Anhembi, em São Paulo. Entre as atrações confirmadas estão Judas Priest, Bring Me The Horizon, Trivium, Sepultura, Motionless In White, Vended, Pantera e Project46.

Os ingressos estão disponíveis no site da Eventim e já estão no quarto lote.