Você já deve ter lido Arlindo ou lido sobre Arlindo. Sobre a história LGBTQ+ na adolescência, fofinha, mas forte e sincera ao tratar de preconceito e aceitação. Se não viu, deve ter ouvido falar do amarelo e do rosa flúor berrantes que são o impacto visual na arte da Ilustralu. Ou conhece o case de Arlindo, de páginas no Twitter a projeto encampado por editora grande que arrecadou mais de 350 mil reais no Catarse.
Tudo isso é forte e é muito bom. Mas, sabendo de tudo isso e tendo finalmente lido Arlindo, o que me impactou foi que os personagens falam “oxe”.
Não só “oxe”. Tem “painho”, “mainha”, “voinha”, “chegue”, “besta”, “lesado”, “vixe”, “um xêro”. Arlindo se passa em Currais Novos, no interior do Rio Grande do Norte e, segundo Ilustralu – ou Luiza de Souza, também nascida em Currais Novos e hoje moradora de Natal –, os personagens da HQ falam como ela falava na adolescência.
“Eu quis que as pessoas lessem essa história com toda a potência que a regionalidade podia trazer”, ela me contou numa entrevista.
Não é o primeiro quadrinho brasileiro que coloca nos balões as expressões, as gírias e até a coloquialidade própria de uma região do nordeste. Mas esse tipo de quadrinho ainda é raro. Entre os publicados por editoras grandes – Arlindo saiu pela Seguinte, parte do grupo Companhia das Letras, de São Paulo – é uma raridade ainda maior.
O que se vê em quase todo o quadrinho brasileiro, seja de onde o autor for – ou seja de onde o tradutor for –, é o “português brasileiro padrão”. Que corresponde, em muitos casos, aos sotaques do Sudeste. A maioria das editoras do Brasil está em São Paulo e Rio de Janeiro, e as decisões do que é o “português padrão” passam por preparadores, revisores e editores do Sudeste.
Também há uma grande concentração de quadrinistas no Sudeste, como acontece com todas as artes no Brasil. Lendo quadrinho brasileiro (ou traduzido para cá), a impressão é de que o único português que se fala no país é o daquela região. Ou melhor, que o Sudeste não é uma região, e que quem usa “regionalismos” é o resto do país.
“A gente não precisa pedir desculpas pelo jeito como a gente fala”, Ilustralu me contou. “A gente não precisa pedir desculpas pelo transtorno da pessoa sudestina que não sabe o que significa uma palavra. Ela que vá aprender, como a gente passou a vida aprendendo coisas dos outros cantos.”
(Ela está parafraseando uma das frases que ela mesma escreveu e que é uma das linhas-guia de Arlindo: “A gente não devia viver com medo de gostar de ninguém, nem de ser a gente mesmo.”)
Ilustralu diz que cresceu escutando e lendo as gírias do sudeste. Nunca na vida falou “mano”, nem “caô”. Entendia, como muitos, pelo contexto e passou a achar as palavras comuns. Mas “comuns” no que lia nos quadrinhos e ouvia no audiovisual, não no que ouvia das pessoas à sua volta.
“Sempre que eu via material com sotaque daqui, as coisas vinham entre aspas”, ela conta. “Eu ficava indignada. Por que as gírias do sudeste não vinham entre aspas?”
Na transição de webcomic publicada de forma independente para livro em uma editora grande, Arlindo não perdeu nada do sotaque. A editora “corrigiu vírgulas”, segundo Ilustralu.
“Não deixei de colocar nenhuma palavra que eu queria. Nada foi dosado ou comedido por ser um livro com distribuição maior. Não fiz isso em nenhum momento. É um apagamento que já acontece naturalmente, não queria que meu livro fizesse parte.”
Pablo Casado é alagoano de Maceió, mas escreve histórias que se passam em Fortaleza, no Ceará – onde nasceu seu parceiro de Mayara e Annabelle, Talles Rodrigues. “Um dos meus maiores prazeres é criar situações onde a nossa forma de falar ganha destaque”, Pablo me contou por e-mail. “Se vai gerar algum problema de compreensão a gente vê depois, caso algum leitor se manifeste – o que seria interessante pra se criar uma conversa maior sobre o assunto.”
Mayara & Annabelle, as aventuras sobrenaturais da “ninja paulista” e da “maga divosa” de Fortaleza, sai desde 2014 em volumes independentes. A Conrad transformou o mesmo material numa série digital e está reeditando tudo em duas Edições Definitivas. A primeira sai este mês. As duas protagonistas vão continuar falando com seus sotaques, nessas e em futuras histórias.
“Foi quando começamos a convidar colaboradores para criar histórias que sentimos que a linguagem era um fator intimidante, justamente por ser algo consolidado junto ao público”, diz Pablo. “No volume Hora Extra, o Hector Lima ficou com uma história focada só na Mayara em São Paulo, que é onde ele mora, e o Márcio Moreira, que é cearense, escreveu uma trama com as duas em Fortaleza. O sotaque da Annabelle dele é melhor do que o meu, inclusive.”
Pablo diz que fica muito contente quando leitores cearenses reconhecem seu trabalho para representar o sotaque de lá – mas também diz que Talles o corrige quando necessário. “As mudanças aconteceram justamente quando um termo que uso aqui [em Alagoas] não é conhecido ou compartilhado lá, daí o Talles me deu o toque. Então conversamos pra encontrar um termo que represente a ideia da cena.”
Ele tem a impressão de que os elogios dos leitores vêm da percepção de que os sotaques em Mayara & Annabelle são autênticos porque fogem do padrão consolidado por boa parte da TV aberta. E diz que seu próximo passo é contar histórias em Alagoas, “para poder continuar destacando essa forma de falar ‘fora do padrão’”.
Pablo Casado também é um dos colaboradores da editora Comix Zone, onde faz preparação de texto de quadrinhos traduzidos do inglês, do francês e do espanhol. A Comix Zone é administrada por outro alagoano, o editor Thiago Ferreira, e o revisor da maioria das publicações é Audaci Júnior, de João Pessoa. Com três nordestinos mexendo no texto, é de se imaginar que os quadrinhos ganhem expressões ou construções, abre aspas, “fora do padrão”.
Só que não, diz Thiago. “A gente não insere nada de ‘nordestinês’. Não é por sermos do Nordeste que exista alguma militância nesse sentido. A gente tenta, sim, ‘neutralizar’ o português. Nos quadrinhos da Comix Zone você vai encontrar o verdadeiro português-brasileiro-ABNT, aquele que pode ser lido do Oiapoque ao Chuí.”
A “neutralização” do português mira as expressões e construções típicas do Sudeste – de onde vem a maioria dos tradutores da Comix Zone, explica Thiago. “Tem uns traços de tradutor paulista que a gente percebeu, como, por exemplo, a eliminação do pronome reflexivo. ‘Você se lembra daquilo?’ chega na tradução como ‘Você lembra daquilo?’. Ou então ‘Como chama aquilo?’ ao invés de ‘Como se chama aquilo?’. A gente conserta porque vê que é um traço regional.”
Thiago diz que se permitiu usar expressões regionais algumas vezes. No primeiro quadrinho da editora, A Canção de Roland, traduzido por ele mesmo, um personagem exclama “Eita gota!”. No original, a frase é uma expressão de espanto típica da região do Québec: “Tabaslac!”. Ele achou justificado trocar uma expressão regionalizada por outra.
“Aí eu vi as duas reações na mesma resenha, um vídeo do Kitinete HQ: o Liber Paz gostou do ‘eita gota’; o Rodrigo Scama não gostou, disse que tirou ele da leitura. ‘O que essa expressão nordestina tá fazendo aqui?’”
Da minha parte – nascido e morando no interior do Rio Grande do Sul, de mãe gaúcha e pai potiguar, com parentes queridos no Rio Grande do Norte, trabalhando há vinte anos para editores do Sudeste e tentando ler gibis de todo o Brasil – o que eu posso dizer é que nunca tinha lido “mufino”, como Arlindo ouve quando chega na casa da avó. Aqui a gente fala “abatido” ou “borocoxô”.
Também não falo “mano” nem “caô”, e só ouvi alguém falar “putz”, “xará” e “truta” na minha frente quando visitei São Paulo. Já levei duas ou três puxadas de orelha por “gauchismos” nos meus textos, principalmente traduções, mas foram poucas. Editores geralmente não têm tempo de dar puxão de orelha; simplesmente trocam e não me dizem nada.
Você, leitor do gibi traduzido, sabe que em Nova York e Gotham City todo mundo fala inglês, ou que em Tóquio falam japonês, mas topa ler aquela gente falando com balões em português, como se tivesse grandes chavezinhas < > em torno do gibi. É o que se chama de “contrato de leitura”. Mas por que esse português tem que ser “padronizado”? Ou do Sudeste?
“Porque é aqui que vende mais”, já ouvi de uma editora sudestina quando fiz essa pergunta. E é verdade. Mais de 50% das vendas do mercado editorial brasileiro acontecem no sudeste, com concentração forte em São Paulo. Não é só porque as editoras ficam lá; uma parte considerável dos leitores está lá. Não é só a concentração da produção cultural no Sudeste; o acesso à cultura também é concentrado no Sudeste.
Mas as vendas são justificativa? O português brasileiro é o falado no Brasil, em todo o Brasil, e inclui “mufino”, “tchê” e “égua!”. Quadrinhos brasileiros, ou traduzidos para o português daqui, podiam se servir de todo o cardápio, em vez de focar nos regionalismos do Sudeste.
“Eu sei que nos quadrinhos de super-herói dos EUA”, diz Brendda Maria, “eles usam sotaques de várias regiões. A Arlequina, por exemplo, tem sotaque. Por que eu, fazendo quadrinhos no Ceará, vou me impedir de usar formas de falar daqui? Para que passe mais fácil? Não faz sentido.”
Ilustralu, de Arlindo, resume: “Minhas palavras valem o mesmo tanto. Quem não souber que pesquise.”
VIRANDO PÁGINAS
Foi há 20 anos, em agosto de 2001, que saiu a primeira edição de Estórias Gerais, de Flavio Colin e Wellington Srbek. Foi o último grande trabalho de Colin, que faleceu em 2002. Há várias editoras preparando edições retrospectiva do mestre brasileiro, incluindo Pipoca & Nanquim e Figura.
Nick Fury começou a ganhar a cara de Samuel Jackson em Ultimate Marvel Team-Up n. 5, de agosto de 2001, também há 20 anos. Embora ainda tivesse cabelo, foi sua estreia no universo Marvel Ultimate como um personagem negro, na reconcepção de Brian Michael Bendis e Mike Allred, que depois seria adotada nos filmes do MCU.
Também há 20 anos, exatamente no dia 7 de agosto, Bleach estreava na Shonen Jump. O mangá de Tite Kubo durou 15 anos e saiu no Brasil pela Panini entre 2007 e 2017.
Mark Gruenwald, um dos escritores e editores mais queridos da Marvel Comics, uma biblioteca ambulante sobre toda a cronologia Marvel, faleceu precocemente em 12 de agosto de 1996, há 25 anos. Ele foi imortalizado como o personagem Mobius M. Mobius, agente da Autoridade de Variância do Tempo, numa história do Quarteto Fantástico por Walt Simonson. Recentemente, Owen Wilson foi maquiado exatamente com a cara de Gruenwald para interpretar Mobius no seriado Loki.
UMA PÁGINA
Só uma das páginas acachapantes de The City of Belgium, do belga Brecht Evens, que saiu este ano em inglês. O uso de cores e a narrativa de Evens, misturando vários personagens numa noitada em Bruxelas, assusta cada vez que você vira uma das 400 páginas. Todos os trabalhos de Evens seguem inéditos no Brasil.
UMA CAPA
De Jenny Frison, em Catwoman n. 36. Sai em outubro nos EUA.
(o)
Sobre o autor
Érico Assis é jornalista da área de quadrinhos desde que o Omelete era mato. Também é autor do livro Balões de Pensamento.
Sobre a coluna
Toda sexta-feira (ou quase toda), virando a página da semana nos quadrinhos. O que aconteceu de mais importante nos universos das HQs nos últimos dias, as novidades que você não notou entre um quadrinho e outro. Também: sugestões de leitura, conversas com autores e autoras, as capas e páginas mais impactantes dos últimos dias e o que rolar de interessante no quadrinho nacional e internacional.
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