Foi uma coisa que evoluiu na década passada. No início era uma pergunta inocente, quem sabe até válida, curiosa, sobre uma coisa que era incomum: “Como é ser mulher e fazer quadrinhos?”. Estava em toda entrevista e toda mesa de evento com a presença milagrosa de uma mulher quadrinista. Depois a pergunta virou coisa de gente mal informada. Pelo fim dos anos 2010, virou ofensa.
Se não me engano, foi na Bienal de Quadrinhos de Curitiba de 2018 que a tradutora e crítica Maria Clara Carneiro, em uma mesa com outras quadrinistas, ouviu a pergunta da plateia e deu a resposta suprema: “É só enfiar o lápis na boceta e desenhar de cócoras”.
Desenho de Julie Maroh, feito após a polêmica de Angoulême em 2016
A notícia da semana é que, pela primeira vez na história do Festival d’Angoulême, o Grand Prix será disputado por três mulheres. Julie Doucet, Catherine Meurisse e Penélope Bagieu são as três concorrentes. Já falo delas.
O Grand Prix é um prêmio pelo conjunto da obra, um reconhecimento de que a pessoa teve uma carreira de peso nos quadrinhos. O festival francês tende a privilegiar franco-belgas, mas já premiou autores e autoras de vários países. O premiado ou premiada também ganha uma exposição solo no Festival do ano seguinte, assim como desenha o cartaz do evento. (Por isso o prêmio nunca é póstumo.)
É a maior distinção que um quadrinista pode receber na França. Como os franceses levam os quadrinhos mais a sério que o resto do mundo, é a maior distinção que um quadrinista pode receber no mundo.
Na história de Angoulême, 55 quadrinistas entraram para a galeria do Grand Prix. Só duas foram mulheres. Ou três, dependendo de quem conta. Pelo menos duas só chegaram lá porque o Festival precisou de um empurrão.
O catálogo de expositores do Festival d’Angoulême de 2001 por Florence Cestac.
Claire Bretécher (1940-2020) – criadora de Os Frustrados, Agrippine e outras séries, provavelmente o nome feminino de maior destaque no quadrinho francês, mal publicada no Brasil – dividiu a honraria com um quadrinista homem, Paul Gillon, em 1982. Na verdade, naquele ano o Festival deu dois Grand Prix: o tradicional e outro especial, de dez anos do evento. Ela ficou com o segundo. Tem gente que não considera um Grand Prix de verdade, sobretudo porque ganhar o Grand Prix “especial” não desqualificou Bretécher para ganhar o Grand Prix “real”. O que nunca aconteceu.
Em 2000 foi a vez de Florence Cestac, autora e editora de renome no mercado de lá e inédita aqui. Além de obras como Harry Mickson, Le Démon de Midi e Un amour exemplaire, ela fundou a importante editora Futuropolis com seu companheiro, Étienne Robial, em 1974. Cestac ganhou o Grand Prix “real”, sem discussão.
Em 2016, no meio da década em que “Como é ser mulher e fazer quadrinhos?” pegou fogo, a Academia dos Grand Prix de Angoulême fez uma caca histórica. Lançou uma lista de trinta concorrentes ao prêmio para votação entre profissionais de HQ. Não havia um nome feminino entre os trinta.
Vieram boicotes, abaixo-assinados e até passeatas. Pelo menos dez nomes da lista pediram para sair e vários se recusaram a votar. Na última hora, os organizadores somaram seis nomes femininos à votação, mas disseram que autoras como Marjane Satrapi e Posy Simmonds haviam tido “votação baixa” em anos anteriores. Ninguém gostou da desculpa. O Grand Prix daquele ano ficou com um homem, o belga Hermann.
Foi só em 2019, quando a polêmica já tinha esfriado, que a mangaká Rumiko Takahashi (Ranma 1/2, Inu-Yasha) ganhou o segundo Grand Prix oficial dado a uma autora.
O cartaz do Festival d’Angoulême de 2020 por Rumiko Takahashi.
Durante a polêmica de 2016, a nota oficial da organização do Grand Prix de Angoulême também se justificou dizendo que o comitê não podia “reescrever a história dos quadrinhos” – tirar da cartola nomes femininos de destaque na história das HQs para concorrer ao Grand Prix, se o mercado sempre foi dominado por homens. A desculpa também não colou.
O caso é que poucas mulheres se destacaram na história dos quadrinhos porque poucas tiveram chance de entrar no mercado. O Clube do Bolinha comum a quase todas as áreas profissionais sempre foi regra, se não pior, nas áreas criativas ou artísticas. Os quadrinhos entram na conta.
Falava-se que, historicamente, meninas leem menos gibi do que meninos, o que acarreta em menos conteúdo para meninas e menos mulheres interessadas em seguir essa carreira. Nunca vi os dados para comprovar, e também já ouvi o contrário: sempre houve muita menina lendo gibi.
Dá para supor que o fato de a maioria dos gibis serem feitos por homens contribuía para menos leitoras. Hoje, porém, principalmente depois dos mangás – um mercado mais ligado e inclusivo, que recuperou meninas entre o leitorado – quero crer que há mais leitoras do que leitores. Mas também não tenho os dados.
Foi só em 2012, por exemplo, que uma mulher – Becky Cloonan – desenhou uma edição de Batman, a principal do morcegão da DC Comics. A revista tinha passado 73 anos sem um traço feminino – e ainda não teve uma desenhista fixa. No ano passado, Kelly Thompson virou a primeira roteirista com alguma regularidade em Amazing Spider-Man, uma das joias da coroa Marvel. Ela, contudo, faz rodízia com mais quatro autores homens. A revista tem 58 anos.
É claro que há nomes femininos envolvidos com HQ nos EUA, na França-Bélgica, no Japão e no Brasil desde o século 19. Poucas, porém, e geralmente escondidas entre revistas com mínimo crédito – ou nenhum. Não há uma graphic novel brasileira, por exemplo, com o nome da autora em destaque na capa, antes de Amana ao Deus Dará, de Edna Lopes – de 2004, há menos de vinte anos.
E ela ainda pode ser considerada uma precursora, pois foi só na década seguinte que publicações de autoras ganharam volume. Por aqui, foi a partir dos anos 2010 que se viu uma preocupação maior das editoras, dos eventos, dos prêmios, até da crítica – por pressão da própria crítica – em conseguir representatividade feminina nos catálogos, nas seleções, nas mesas de debate, nas resenhas.
Eu mesmo me envolvi em uma polêmica na década do “Como é ser mulher e fazer quadrinhos?”. Fui editor convidado de O Fabuloso Quadrinho Brasileiro de 2015, uma seleção de HQs nacionais daquele ano, que tinha trabalhos de quatro autoras e 32 autores homens. A crítica foi merecida.
A polêmica de 2016 em Angoulême também fez o comitê do Grand Prix mudar as regras para votação. Não há mais long list como aquela dos 30 homens. Profissionais são convidados a votar em quem quiserem, desde que seja um quadrinista com publicações em francês. Aí o comitê faz a short list, com três nomes, e envia de novo para votação.
Dos três nomes deste ano, a canadense Julie Doucet é a veterana. Ela fez parte daquele movimento dos “zines de autor” na virada dos anos 1980 para os 1990, que incluiu Dan Clowes (Eightball), Adrian Tomine (Optic Nerve), Jessica Abel (Artbabe), Chester Brown (Yummy Fur) e outros. Doucet publicava a Dirty Plotte (“boceta suja”, usando uma gíria quebecois), que começou como zine fotocopiado e virou série da Drawn & Quarterly. As histórias eram geralmente autobiográficas.
O nome de Doucet anda em alta. A coleção completa e luxuosa da Dirty Plotte saiu em inglês em 2018 e, depois de vinte e poucos anos afastada das graphic novels, ela lança uma nova em abril: Time Zone J. Por coincidência, a Veneta anunciou a primeira publicação de Doucet no Brasil para este ano: My New York Diary.
A outra concorrente ao Grand Prix, Penélope Bagieu, é mais conhecida por aqui. A francesa de 40 anos teve Uma Morte Horrível, seu primeiro álbum, lançado pela Nemo, a mesma editora que publicou os dois ótimos volumes de Ousadas, uma coleção de minibiografias de mulheres da História.
Bagieu representa uma geração que já começou a fazer quadrinhos na internet, com o blog Ma vie est tout à fait fascinante, de histórias pessoais e engraçadas. Ela voltou a autobiografia no final do ano passado com Les Strates (as camadas) e estava na short list para o Grand Prix de 2021.
A terceira e última concorrente ao Grand Prix é Catherine Meurisse, praticamente só conhecida dos franceses e inédita no Brasil. Ela tem mais de vinte anos de carreira, sobretudo ilustrando para a imprensa. Ela passou dez anos no Charlie Hebdo e estava atrasada para a reunião da revista naquele 7 de janeiro de 2015 em que dois homens invadiram a redação e começaram a metralhar. Oito colegas morreram.
La Légèreté (a leveza), seu álbum de 2016, trata de como ela se recuperou do choque do atentado. Álbuns mais recentes, como Les Grands Espaces e La jeune Femme et la Mer também passam pela autobiografia. Todas suas notas biográficas dizem que ela é a primeira quadrinista a ser selecionada para a Academia de Belas Artes francesa, o que parece muito importante entre os franceses. Ela também estava na short list do Grand Prix do ano passado.
Aconteça o que acontecer, haverá uma terceira (ou quarta) “Grand Prix-zada” em Angoulême este ano. O resultado da votação sai daqui a alguns dias, em 18 de março – o Festival acontece entre os dias 17 e 20.
Independente do resultado, a short list com três autoras, por si só, está sendo chamado de marco. Pequeno, atrasado, revoltante, mas um marco que faz pensar em “Como é ser mulher e fazer quadrinhos?”
É demorado, é trabalhoso, paga mal e, quando elas ganham um prêmio que 50 homens já ganharam, chamam de marco.
(Obrigado a Gabriela Borges, do Mina de HQ, por ser a primeira leitora deste texto.)
MAIS HOMENS OU MAIS MULHERES?
O prêmio literário do jornal Los Angeles Times também anunciou seus indicados na categoria de quadrinhos estes dias, e a questão do equilíbrio entre indicados e indicadas tomou outro nível.
São cinco concorrentes: A Espera, da coreana Keum Suk Gendry-Kim; Shadow Life, da norte-americana Ann Xu e da japonesa-canadense Hiromi Goto; Heaven No Hell, do canadense Michael DeForge; No One Else, do norte-americano R. Kikuo Johnson; e Stone Fruit, da australiana Lee Lai.
São duas HQs de autoras, duas HQs de autores e… a HQ de Lee Lai.
Segundo minha pesquisa e a do editor Rômulo Luís, da Veneta – que anunciou Stone Fruit entre lançamentos do ano – concluímos que Lee Lai é uma pessoa trans que usa pronomes femininos. Conversando por Instagram, confirmei com a própria autora: Lai usa pronomes femininos e se identifica como não-binária ou apenas "trans".
Então, o prêmio literário do Los Angeles Times privilegiou autores ou autoras?
Parece que a pergunta envelheceu.
Curiosamente, os três trabalhos de autoras foram ou serão publicados no Brasil. Além de Stone Fruit em breve pela Veneta, A Espera saiu pela Pipoca & Nanquim no ano passado e Shadow Life foi anunciado para este ano pela Conrad.
VETERANOS RECONHECIDOS
O Ministério da Educação, Cultura, Esportes, Ciência e Tecnologia do Japão anunciou esta semana os primeiros mangakás a serem escolhidos como membros da centenária Academia Japonesa de Artes. São Yoshiharu Tsuge e Tetsuya Chiba, duas lendas vivas do quadrinho japonês.
Tsuge é o autor de O Homem Sem Talento, clássico publicado no Brasil em 2019 pela Veneta, e reconhecido internacionalmente. Ele tem uma carreira de mais de três décadas nas HQs, que abandonou nos anos 1980.
Chiba, inédito no Brasil, é famoso como desenhista do mangá de boxe Ashita no Joe (escrito por Asao Takamori), dos anos 1960 e 1970, e ganhou inúmeros prêmios no país.
Como membros da Academia nacional, Tsuge e Chiba viram funcionários públicos de meio período e ganham uma pensão anual de 2,5 milhões de ienes (R$ 110 mil) até o fim da vida. O reconhecimento, porém, chegou um tanto tarde: Tsuge está com 84 e Chiba com 83 anos, batendo na expectativa de vida do Japão (que já é uma das mais altas do mundo).
É a primeira vez, porém, que a Academia Japonesa de Artes reconhece artistas da fotografia, do design, do cinema e do mangá.
FARÓIS
“Tem gente que gosta de fazer toda a etapa do lápis [de um álbum] de primeira, mas isso vai contra o que eu entendo como escrever. Teve várias vezes em que eu me senti inseguro na escrita. Eu adoro a maneira como Anne Lamott explica em 'Palavra por Palavra': imagine que você está dirigindo à noite com os faróis acesos. Você escreve a respeito de tudo que aparece nos faróis. Conforme o carro anda, você enxerga mais, você se depara com mais, e você escreve sobre esse mais. Você não se preocupa com o que fica fora dos faróis.”
Jordan Crane, em entrevista curtinha a Shaenon Garrity na Publishers Weekly. Ele levou vinte anos para produzir Keeping Two, a graphic novel que sai este mês pela Fantagraphics, cheia de idas e vindas por onde os faróis apontaram. Já tem gente chamando de obra-prima.
SEXO E BOLHAS
Brian K. Vaughan, na sua newsletter, escreveu sobre sexo nos quadrinhos. Ele já é autor de algumas cenas antológicas de sexo em Saga– e compartilhou o roteiro da cena de sexo oral que abre Saga n. 50 (Saga vol. 9 no Brasil) em um dos últimos e-mails.
Mas ele quis falar mais de cenas de sexo que ele não escreveu. E uma de suas preferidas é, por acaso, a minha: o início de La technique du périnée (a técnica do períneo), de Ruppert e Mulot. Escrevi sobre a cena em 2019:
"Na primeira cena, um casal está no alto de um monólito gigantesco, quilômetros de altura. Cada um tem uma espada. Os dois se atiram lá do alto. Durante a queda, tiram as roupas. Nus, enfiam as espadas no monólito para retardar a queda. As linhas que as espadas deixam no monólito fazem ondas, afastam-se, aproximam-se, cruzam.
'Vai gozar?' 'Vou.' 'Eu também.'
O fim do monólito é um lago. A queda dos dois levanta bolhas gigantes. Os dois flutuam sobre o lago, atacando as bolhas com as espadas, rasgando-as ao meio. Eles têm pressa, ficam ofegantes, precisam atacar quantas bolhas puderem. Os dois caem na beira do lago e conversam mais um minuto, enquanto os pingos caem ao redor."
Ou, como resumiu Vaughan: “Veja como os autores tentam representar visualmente a sensação do clímax.”
VIRANDO PÁGINAS
Mark Evanier, célebre colaborador de Sergio Aragonés em Groo, célebre assistente de Jack Kirby, escritor e historiador dos quadrinhos, além de roteirista de uma pilha de desenhos animados, completou 70 anos na quarta-feira. Seu blog News From ME continua muito ativo.
Esteban Maroto, o espanhol de Cinco por Infinito, Espadas & Bruxas, criador do biquíni metálico da Sonja e artista marcante da Vampirella, completou 80 anos ontem.
Lucy Van Pelt, uma das personagens mais famosas de Peanuts e, por extensão, do universo, estreou numa tira de 3 de março de 1952, há 70 anos.
Em março de 1992, há 30 anos, chegavam as bancas via Editora Abril: Homem-Aranha: Tormento n. 1, minissérie que adiantava a nova fase de Todd McFarlane com o aranhudo; Wolverine n. 1, primeira revista mensal do carcaju (que durou 101 edições); e Grandes Heróis Marvel n. 35, primeira publicação brasileira do clássico Arma X, a origem de Wolverine contada por Barry Windsor-Smith.
Entre março de 1972, há 50 anos, e agosto do mesmo ano, a editora Hemus publicou Favoritos de Tintin, uma revista mensal que só tinha a chancela do jornalista de topete para publicar outros clássicos do quadrinho franco-belga: Michel Vaillant, de Jean Graton, Luc Orient, de Greg e Eddy Paape, Ric Hochet, de Duchâteau e Tibet. A série acompanhava outra mensal, a Seleções Tintin, essa com o topetudo e outras atrações, também da Hemus e que também durou pouco.
UMA CAPA
De Golden Boy: Beethoven’s Youth, de Mikael Ross (tradução de Nina Knight, designer não creditado). A capa espetacular e o nome de Ross – do excelente Aprendendo a Cair – prometem muito nesta graphic novel que conta a carreira de Beethoven dos 8 aos 15 anos. O original saiu em 2020 na Alemanha, também com uma capa sensacional.