Uma vez oficializado que A Criatura de Gyeongseong, série sul-coreana de sucesso no catálogo da Netflix, retornaria para uma segunda temporada, e que ela seria ambientada na Seoul dos tempos atuais, ao invés de na Coreia colonizada do início do século XX, uma preocupação muito natural deu as caras: muito além da logística de transportar os seus personagens de um período para o outro, ficava difícil imaginar como a roteirista Kang Eun-kyung manteria o impulso temático de uma história sobre os horrores do colonialismo em um tempo e espaço que simplesmente não sofre mais com eles. E, ao menos durante os primeiros três episódios desta nova temporada de Gyeongseong, parece mesmo que ela não vai conseguir - o que só torna o baque do que vem depois ainda mais interessante.
A partir do momento no qual o mistério bobo da premissa inicial da temporada se resolve, revelando como os personagens do primeiro ano vieram parar na Seoul contemporânea, o roteiro de Kang se esmera em uma história sobre os perigos do apagamento histórico. Nesta nova Criatura deGyeongseong, esquecer as atrocidades do passado é equivalente a seguir o caminho tentador da conformidade, se render a instituições que, até por seus laços e débitos ancestrais com as organizações colonialistas, continuam explorando as mesmas pessoas, com os mesmos objetivos (poder e controle), uma crueldade endossada pelo dinheiro, pelo privilégio, e pelo medo de perdê-los.
Ao mesmo tempo, a série entende que a transição do poder colonial para o poder corporativo - a vilã aqui é uma empresa de biotecnologia secretamente controlada pela lacônica Maeda (Claudia Kim), que continua o trabalho do antigo governo japonês, realizando experimentos científicos com cobaias humanas - significa que a carapuça mudou de cabeça. Se, no passado, os poderosos precisavam disfarçar sua cobiça e compulsão controladora com algum propósito pseudo-patriótico, usando a força das máquinas governamentais para subjugar o outro; agora, a dominação cultural desses mesmos sujeitos é tão prevalente, a sua narrativa tão poderosa, que não é difícil pensar que única maneira de permanecer vivo é se subjugar a eles.
Na fantasia de A Criatura de Gyeongseong, é claro, essa subjugação vira uma metamorfose literal, com a infecção por um parasita que transforma as cobaias em monstros comedores de cérebro. Os mesmos monstros, criados pelas mesmas pessoas, em um tempo diferente. E, como o protagonista Tae-sang (Park Seo-joon) explica quando questionado sobre sua luta quase centenária contra os mesmos poderes, deixar-se esquecer da relação entre um tempo e outro é garantir a perpetuação do ciclo, se render, ceder a vitória ao inimigo, deixar que eles escapem sem nem mesmo sentir culpa, ou incômodo, ou irritação - o que quer que seja, desde que não seja nada.
É verdade que A Criatura de Gyeongseong cede a alguns vícios do entretenimento contemporâneo ao puxar sua narrativa para o século XXI. Se a enrolação nos primeiros episódios incomoda, é também porque, no novo contexto em que estão inseridos, esses personagens se encaixam perfeitamente no molde da história de super-herói. Nesse sentido, eles perdem um pouco da potência que tinham no primeiro ano, quando o arco de todos eles entre a conformidade e a revolução ganhou tintas muito mais subversivas, e os “poderes” dos monstros se posicionavam muito mais como uma extrapolação fantasiosa bem conceituada do que como aparecem aqui, em uma concessão aborrecida à necessidade comercial do gênero.
Nessa brincadeira, tanto Park Seo-joon quanto sua coprotagonista Han So-hee também se veem na posição de entregar performances menos sutis - não que eles deixem de ser eficientes, seja como casal ou como sujeitos isolados em cena, mas falta algo de perspectiva histórica no cortejo entre os personagens, presos nos moldes dessa trama um tanto convencional para os tempos que vivemos. No que compete a séries de super-herói, enfim, A Criatura de Gyeongseong segue tendo eloquência acima da média - no que compete ao que a série já fez antes, no entanto, ela obviamente sai perdendo.