Localizado no coração do distrito Pigalle, em Paris - mais conhecido por seus sex shops e cinemas pornográficos - o Teatro do Grand-Guignol fez seu nome, entre 1897 e 1962, como palco de peças de terror que não economizavam no sangue cenográfico nem na sordidez de suas tramas. Esses espetáculos, apresentados por um preço mais acessível do que o usual, se tornaram tão populares que o termo Grand-Guignol passou a definir todo um subgênero da ficção de horror, codificado pela abordagem desavergonhada do gore, mas também pelo melodrama latente de suas encenações. Em outras palavras: um horror apelativo, mas com estilo. Popularesco, mas grandiloquente nas suas aspirações.
A Queda da Casa de Usher não estaria fora de lugar no palco do Grand-Guignol, e é surpreendente poder dizer isso de uma obra de Mike Flanagan. Lá em 2021, eu mesmo estava falando sobre como Missa da Meia-Noite, outra minissérie de Flanagan para a Netflix, “usava o terror como ferramenta, não como objetivo”. Naquela oportunidade, caracterizei as (poucas) imagens aterrorizantes da produção e os seus (ainda mais tímidos) sustos como a aproximação mais ousada que Flanagan já havia feito do lado kitsch, “explícito e confrontador”, da ficção de horror. A Queda da Casa de Usher prova que tudo aquilo foi mero ensaio para as alturas grotescas do que estava por vir.
Até a estrutura da trama se presta - calculadamente, é claro - a esse exercício de gore. Conhecemos a família Usher, uma dinastia de bilionários da indústria farmacêutica, em um momento de crise: conforme o governo americano, liderado pelo promotor Auguste Dupin (Carl Lumbly), tenta finalmente responsabilizar a família pelas milhares de mortes causadas pelo analgésico altamente viciante vendido por sua empresa, os herdeiros do magnata Roderick Usher (Bruce Greenwood) começam a morrer, um a um, em circunstâncias para lá de violentas e misteriosas.
São seis os filhos de Roderick, o que significa que cada um dos episódios no miolo da minissérie (o primeiro e o último são reservados para introduzir e fechar a história) é dedicado a analisar mais de perto as neuroses de um deles, culminando em um banho de sangue que marca sua despedida da trama. Peles queimadas e derretidas por agentes químicos, rostos deformados por ataques de animais, corpos criativamente mutilados por “acidentes” absurdos… A Queda da Casa de Usher tem de tudo, e revela um Mike Flanagan (roteirista de 7 dos 8 episódios, diretor de 4 deles) que não apenas conhece e alude às imagens mais escatológicas do horror, como simplesmente se delicia com elas.
Talvez parte disso tenha a ver com a matéria-prima de A Queda da Casa de Usher, que recorta e cola elementos de várias obras do escritor Edgar Allan Poe em uma trama quase inteiramente original. Não é exatamente um processo estranho para Flanagan, que retorceu e reposicionou clássicos de Shirley Jackson e Henry James nas duas temporadas de sua série antológica A Maldição, também da Netflix, mas há um quê a mais de reverência nas liberdades criativas tomadas por Casa de Usher. Por toda a sua “modernização” de Poe, a minissérie parece indisposta ou incapaz de se descolar dos elementos alegóricos da escrita dele, do horror cósmico que (ao contrário de Lovecraft, por exemplo) ele conseguia sugerir a partir de elementos cênicos corriqueiros.
Como as melhores obras de Poe, A Queda da Casa de Usher subverte o familiar em arrepiante através de um impulso iconográfico irresistível, e representa, faz teatro da realidade na qual foi criada sem realmente precisar falar muito dela. Daí que os longos monólogos que um dia foram o feijão com arroz do horror-drama de Flanagan se transformam em trocas mais rítmicas entre personagens, momentos mais fugazes de introspecção - prosa transformada em poesia, de certa forma. E os atores que compreendem a trupe de colaboradores usuais do diretor são obrigados a se afastar dos intrincados solilóquios shakespearianos para trafegar no campo profano da caricatura.
Talvez não surpreendentemente, eles se dão muito bem por ali, cada um à sua maneira. Henry Thomas deixa o seu Frederick descender completamente na direção da paródia, uma montanha de nervos e glândulas sudoríparas equilibrada em cima de um rascunho porco de identidade emocional. Samantha Sloyan, enquanto isso, recorre novamente à raiva em banho-maria que expressou como a Bev de Missa da Meia-Noite, mas aumenta o fogo que queima por baixo dela para o ponto de ebulição, criando um retrato fascinante de uma vida-castelo-de-cartas em pleno processo de desmoronamento.
As duas performances-chave para entender Casa de Usher, no entanto, vêm de Bruce Greenwood e Carla Gugino, tanto por seus pontos de convergência quanto pelos abismos que existem entre elas. Greenwood oferece um alicerce dramático para a série, construindo um bilionário perfeitamente odiável, absolutamente culpável, mas nunca desprovido de alma ou gravidade pessoal. Dá para entender por que as pessoas dariam poder a ele, mas também dá para entender a aleatoriedade dos sistemas de poder que o colocaram ali. Gugino, enquanto isso, representa os voos mais ousados de Casa de Usher pelo território do kitsch, do sinistro, do grotesco, do falso, do absoluta e irrestritamente teatral.
Em sua linguagem corporal e entonação de voz, Gugino é capaz de ser terrivelmente intimidadora, espetacularmente terna, flagrantemente impiedosa, violentamente carismática - mas absolutamente nada que fique no meio-termo entre todas essas coisas. Ela é o id indomado de Casa de Usher, grosseira (no melhor sentido!) até enquanto recita o verso mais sofisticado de Poe, o que é perfeitamente adequado para uma série que olha para os CEOs farmacêuticos do mundo, com sua riqueza obscena apoiada em pirâmides de corpos inocentes, e os reduz a criaturas de impulso.
Longe de uma The White Lotus ou um Triângulo da Tristeza, que apoiam sua sátira no schadenfreude que vem de ver os ricos se digladiando entre si (ou com o oceano), A Queda da Casa de Usher olha para os privilegiados e cruéis - separar uma coisa da outra é quase impossível, diz a série - como monstros de uma humanidade que fugiu totalmente do próprio controle e está inexoravelmente a caminho do túmulo. O melhor que podemos esperar é um pouco de misericórdia pelo caminho.
Poe, eterno pessimista e eterno romântico, estaria orgulhoso.