Escrever um drama médico nos dias de hoje é um risco. Mesmo com o gênero completamente saturado, os que são lançados permanecem no ar inacreditavelmente, repetindo os mesmos casos e soluções, na maioria brutal das vezes. Encontrar um sopro de originalidade é quase impossível e afastar-se de comparações é igualmente árduo. Não só é preciso conseguir se destacar da “multidão”, como também é preciso lidar com a soberania de Grey's Anatomy. A presença da série de Shonda Rhymes é tão opressiva, que muitas vezes os outros dramas médicos escolhem o caminho mais fácil: reproduzi-la.
The Good Doctor já saiu do papel com um problema para contornar. Criada por David Shore, ela só substituía a excentricidade grosseira de House (grande sucesso do roteirista) pela excentricidade involuntária de Shaun (Freddie Highmore). Sem amadurecer nenhuma das próprias técnicas, Shore colocou “O Bom Doutor” no ar apelando para tudo: a genialidade incompreendida do protagonista, sua “insensibilidade”, a escolha de Freddie depois de já ter vivido um excêntrico em Bates Motel e até o título veio carregado de oportunismo – afinal de contas, todos os outros “The Good” já lançados tiveram grandes carreiras.
Durante seus primeiros três anos, The Good Doctor lutou como pôde para se fortalecer. A audiência continuava fiel (como acontece muito com procedurais), mas nada exigente. Na dramaturgia do programa, não havia muita exigência tampouco. Nada era exatamente ruim. Contudo, os episódios foram revelando zero personalidade, os coadjuvantes não provocavam nenhuma identificação e logo que Shaun passou a ser “aceito” entre os demais, a série também perdeu um monte de pontos de tensão. Naturalizar o espectro é importantíssimo, mas talvez (e pelo grande número de episódios por temporada) isso tenha acontecido sem equalização. Fica evidente quando colocamos em perspectiva a relação de Shaun com Lea (Paige Spara) nessa temporada. De gravidez a casamento, tudo foi usado para testar o protagonista no campo pessoal, já que no profissional estava tudo esgotado.
Esse ano, Shore surpreendeu ao decidir não passar mais que 2 episódios tratando da pandemia. Foi isso mesmo, só uma obrigação protocolar. O susto – o bom susto – veio depois, quando uma trama muito conhecida dos fãs de Grey's Anatomy se apresentou. Um novo grupo de residentes chegou até o hospital, de um jeito tão bem calculado que era como se a série estivesse recomeçando. Liderados pelos atendentes, inseguros, amedrontados, cada um com uma personalidade distinta e encaixada perfeitamente nos modelos que já conhecemos bem: a ambiciosa um pouco egoísta, a que se envolve emocionalmente, as etnias, as sexualidades... Tudo encaixadinho, com direito a competição e eliminação logo no primeiro momento. Pode parecer jocoso que uma estratégia tão cretina pudesse ter dado tão certo.
The Good Anatomy
Como se acordasse de um sono, The Good Doctor de repente estava dinâmica e comovente. Evidentemente que isso não se deve aos dramas dos coadjuvantes originais, mas sim ao time formado por Asher (Noah Galvin), Olivia (Summer Brown), Jordan (Bria Samoné) e Enrique (Brian Marc), os pupilos do hospital, que de uma hora para outra precisaram colocar em prática anos de estudo enquanto faziam isso lidando com vidas humanas. Foi através do medo que eles sentiam, dos erros que cometiam e da ansiedade que demonstravam, que a série passou a ter “vida”. Coincidência ou não, o criador David Shore não esteve envolvido em absolutamente nenhum dos roteiros que compuseram esse “miolo” da temporada.
Enquanto os novos residentes conseguiam tirar a série do marasmo, os dramas dos personagens clássicos se esforçavam para continuar nos entediando. Cada um dos plots escolhidos para esses personagens foi especialmente selecionado para ser previsível. Um trauma para um, um romance truncado para outro, um casamento esfarelado logo adiante... Sabemos que a TV está tomada dessa mímese inevitável, mas um bom roteiro transforma clichê em catarse. Mesmo com tanto potencial e em sua última temporada, Claire (Antonia Thomas) foi “presenteada” com a chegada do pai ausente, depois desse tipo de recurso cansado já ter sido usado com a mãe dela. Em determinado ponto eles já sabiam que Antonia não voltaria e poderiam ter aproveitado para levar Claire a lugares inimagináveis. Ficaram ali pela superfície mesmo.
O Season Finale levou todo mundo para a Guatemala numa missão médica bastante interessante. Foi um jeito digno e eficiente de dar para a quarta temporada um fim que não desnivelasse o mínimo progresso que tinham conquistado. Ainda teremos que aturar o casamento de Shaun e Lea no quinto ano, mas a perspectiva de ver a rotina dos novos residentes é animadora. Podem até adicionar mais alguns para continuar melhorando o ritmo e depois matá-los num tiroteio dentro do hospital. Vamos lá... Já que é para “homenagear” um pioneiro, que façam o serviço completo.