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Séries e TV

Crítica

Baseada em fatos, Maid impressiona mais pelo que representa

Drama da Netflix segue a trilha de desmascaramento do American Way of Life

04.10.2021, às 09H33.
Atualizada em 05.10.2021, ÀS 16H13

A carreira do produtor executivo John Wells é curiosa. Depois de ficar conhecido por trabalhar em procedurais como Plantão Médico e Parceiros da Vida, Wells assumiu a cultuadíssima The West Wing, quando Aaron Sorkin decidiu abandoná-la. Ele adicionou à minimalista rotina dos corredores da Casa Branca algumas doses do caos pelo qual sempre foi conhecido. A partir daí, ele deu um tempo dos procedurais, começou sua incursão no mundo das famílias disfuncionais e se tornou o showrunner de Shameless, a série que talvez represente em essência tudo que a minissérie Maid mostra ao espectador em seus 10 episódios: o American Way of Life está morto.

Não será coincidência se os espectadores que conhecem Shameless virem em Alex (Margaret Qualley) um pouco de Fiona (Emmy Rossum). As duas sustentam as bases da família enquando passeiam pelo abuso geracional e sofrem para abrir mão de relações tóxicas. Dadas as devidas proporções, é claro. Shameless é uma comédia e Maid é um drama. Contudo, o que as duas produções mais tem em comum é a maneira como ilustram a decadência de uma cultura social, regada de muitos códigos geracionais que são passados de pai para filho, de mãe para filha, disfarçados do que os americanos chamam de “uma américa conservadora”.

Entre os produtores da adaptação do livro de Stephanie Land também surge o nome de Margot Robbie. A showrunner oficial e dona dos créditos de adaptação é Molly Smith Metzler. Mas, é a mão de John Wells que aparece desde o primeiro episódio. Com a trama tão focada em Alex, o trabalho do texto e da direção é tornar a personagem crível. A estratégica de Wells, nesse caso, é sublinhar o desespero da moça em muitas sequências de ligações que dão más notícias, em muitos momentos constrangedores em que o dinheiro não dá para a comida, em que ela precisa pedir coisas aos outros... E se tudo isso aparece com ambições cômicas em Shameless, aqui o objetivo é tornar a experiência penosa para o espectador. E ele consegue.

Maids

Existe um objetivo claro nesse processo adaptativo, que é o de mostrar como o sistema público de assistência é burocrático; e apesar de válido, atrasa progressos. Os roteiros de Molly não se acanham e chegam a evidenciar na tela do espectador o orçamento de Alex. Ela entra e sai de instituições, vive preenchendo uma centena de formulários e ainda precisa trabalhar para ter o mínimo para a filha. É uma narrativa que conhecemos bem, que sabemos que passará por uma redenção, mas que ainda assim é chocante. Vista por esse ângulo, a adição do abuso geracional à trama foi uma mudança positiva com relação ao livro. Tanto o abusador Sean (Nick Robinson) quanto a vítima, Alex, estão cercados de exemplos de opressão e submissão. Alguém precisa quebrar o ciclo (o que nos remete, também, ao problemático Era Uma Vez um Sonho, de Ron Howard).

Dramaturgicamente falando, contudo, é o trabalho de Alex que impede que Maid caia totalmente no lugar comum. Filmes de histórias reais já costumam ter essa ferramenta do “escreva sobre o que você vive”, mas o frescor está no meio em que a protagonista está inserida. Para sobreviver, Alex começa a trabalhar numa agência de diaristas e passa a anotar em um caderno, todas as impressões que tem das casas que limpa. É assim que ela conhece Regina (Anika Noni Rose), uma advogada poderosa com quem acaba desenvolvendo uma relutante relação de amizade. É esse o melhor ponto da história da série.

Os produtores foram atrás de encaixe nas problematizações vigentes e tomaram a decisão de colocar uma atriz afro-americana para viver Regina, que aparece por mais da metade da minissérie, maltratando Alex antes de criar um vínculo com ela. É evidente a dificuldade que a narrativa tem de se livrar do impasse de percepções que essa decisão provoca. Regina tem ares de vilã novelesca no começo e acaba transformando Alex numa vítima maior do que ela já é. Demora para que as duas comecem a se entender e Regina saia da perigosa posição da mulher preta raivosa que faz a audiência torcer mais uma vez pela mocinha branca. É difícil saber se alguma coisa não acabou ficando mal entendida no processo.

Regina serve como interlocutora principal do núcleo profissional de Alex, mas todas as personagens que fazem parte dele são interessantes. Outra boa decisão foi trazer Andie McDowell, mãe de Margaret na vida real, para viver sua mãe na ficção. Paula é outro personagem clássico dessa adoentada sociedade, mas que vibra na fuga da realidade. Tudo que acontece e vai acontecer com ela nós já sabemos, mas isso não atrapalha a experiência de acompanhar os belos diálogos com a filha. Coincidentemente, mais uma vez, a mãe de Fiona em Shameless tem bases criativas muito parecidas com as de Paula.

Enfim, Maid não vai levar o espectador a lugares inesperados. Mas, é impossível não ficar sensibilizado por ela. Os problemas de Alex são tantos, que muitas vezes você só quer que algo dê certo para ela, qualquer coisa. E saber que dará, saber que o futuro é de superação da dor, adiciona o otimismo que precisamos para seguir em frente (sabendo que em 90% dos casos a história acabará de outro jeito). A minissérie não é uma obra de ficção desafiadora, mas conta a mais desafiadora das histórias: a de uma mulher partindo correntes.

Nota do Crítico
Bom