Falar sobre a obra do escritor Joe Hill é uma missão controversa. Filho de Stephen King, o maior escritor de horror do século, Joe também teve um trabalho duro na vida: aquele de provar que ele é um artista com identidade própria. Consequentemente, o trabalho da boa crítica era encarar essa arte sem que King precisasse estar o tempo todo na equação. Ler os livros ainda seria um eterno exercício de comparação, mas muito menos por Joe ser filho de King, mas por esse ser um impulso natural para qualquer outro título de horror e suspense que tenha nascido nessa era em que Stephen é um dos nomes mais criativos e adaptados do mundo.
NOS4A2 é um trabalho que nos leva ainda mais na direção dessas referências justamente porque está cercada de características que se relacionam com o universo de King. O vilão desfigurado, cheio de uma maldade chapada, um universo imaginário palpável, palavras-chave que se repetem ao longo da história, fantasmas assustadores enviando mensagens e um cenário familiar ligado ao alcoolismo. Até mesmo o jogo de palavras do título (que lido em inglês soa como Nosferatu) é algo similar ao que King já tinha feito em obras como O Iluminado, por exemplo, com o mistério sobre o REDRUM que preenche as páginas em diversos momentos. É impossível não fazer essas pontes. Mas, ao mesmo tempo, esse tipo de detalhe é encontrado em muito do que circula no mercado.
Nessa segunda temporada foi um pouco mais difícil ignorar as referências. Conhecido por livros gigantes, que tanto podem se passar em poucos dias quanto por várias décadas, King sabia expandir seu universo ao ponto de escrever várias “temporadas” de uma mesma trama num único volume. É o que acontece em IT, por exemplo. Pennywise é vencido depois de uma trajetória inteira, completa, para que tudo volte a acontecer na metade restante do livro. NOS4A2, de Joe Hill, tem uma estrutura parecida enquanto literatura e que, quando foi para a TV, se encaixou perfeitamente com o ritmo episódico e sazonal. Aparentemente, já que a primeira e segunda temporadas funcionaram dessa maneira, o que vamos ver é a ascensão e queda de Charlie Manx (Zachary Quinto) a cada ano.
A primeira e a segunda temporada começam e terminam do mesmo jeito, com Charlie sequestrando uma criança no início e depois tendo seu carro destruído no final. Esses resultados exatos são preocupantes quando pensamos na série a longo prazo, mas é cedo para falar em futuro com uma série que não dá ótimos números e nem possibilidades de premiação. Entre um começo e um final previsíveis estão, enfim, os detalhes que preenchem o meio da temporada. A segunda conseguiu melhores resultados que a primeira, com uma narrativa mais bem demarcada, com objetivos e finalidades claras e com um desenvolvimento até certo ponto corajoso. A boa parte de sempre inventar um jeito de Charlie voltar é que você pode ser criativo na forma como ele será derrotado.
Bridges
A história dessa nova batalha começa com Bing (Ólafur Darri Ólafsson, o melhor ator do elenco) recolocando o carro de Charlie para funcionar, o que, é claro, acaba fortalecendo o sujeito. Oito anos se passaram e aqui começam os problemas de superficialidade dessa trama. Vic (Ashleigh Cummings) casou-se com o simpático Lou (Jonathan Langdon) e criou com ele seu filho Wayne (Jason David). Embora a personagem estivesse ciente de todos os problemas pelos quais passou e tivesse um sistema de suporte pessoal muito presente, ela se torna alcoólatra. A série não se preocupa em nos explicar como isso aconteceu, tudo é determinado em poucas frases que nos situem, apenas para que os roteiristas possam explorar diálogos rasteiros sobre pesar e superação.
Essa também foi a temporada que nos prometeu mais detalhes sobre a vida de Manx. Como sempre faz com seus vilões, Zachary Quinto pesou a mão na construção do personagem e nenhuma das pontas dramáticas que buscam justificá-lo parecem funcionar. De fato, as intenções dos produtores dão a volta e acertam Millie (Mattea Conforti), filha biológica de Charlie, que se tornou a primeira habitante da Terra do Natal e que aparece na série como uma personagem bem mais complexa que ele. Millie é uma espécie de “guardiã” do lugar que Charlie materializou; e por causa da quase morte dele no final da primeira temporada, passou a conseguir enxergar através do véu que separava aquela projeção concretizada do mundo real.
A partir do ponto em que Charlie consegue alcançar Vic e Wayne, a temporada demonstra grande fôlego e nos conduz para um clímax cheio de boas viradas e sacrifícios. NOS4A2 é uma série de tensões muito mais que de emoções. Todas as vezes em que tenta mostrar ao espectador que sabe ser “profunda”, ela nos perde, soa ridícula, como se não soubesse de fato o que está fazendo. Joe Hill, assim como seu pai, não é um gênio dos diálogos e isso vaza para a forma como os roteiros são escritos. Se isso for ignorado é possível se divertir com os episódios finais, que apresentam transformações consideráveis e que têm muito potencial para um terceiro ano menos previsível. A série não pode permanecer presa ao ciclo do “destruímos tudo no final para reconstruirmos tudo no recomeço”.
Há um aspecto da mitologia que é muito peculiar e que os roteiros ainda não exploraram em sua plenitude. Vic, Charlie, Maggie (Jahkara Smith), entre outros que já apareceram na história, são chamados de “criativos”, pessoas que conseguem tornar concretas projeções da própria mente. Essa concretização leva a um resultado prático, mas também tem uma consequência física. Charlie envelhece, Vic tem problemas na visão e Maggie tem convulsões. Há um episódio que mostra, inclusive, como despistar essa consequência. Contudo, esse traço marcante da mitologia ainda não recebeu a atenção que merecia. NOS4A2 não precisa ser sempre sobre a perseguição entre Vic e Charlie, ela pode oferecer muito mais enredo e muito mais desdobramento.
Por hora, podemos dizer que apesar de divertida, essa não é uma obra inesquecível. King e Joe podem, enfim, ter outra coisa em comum: um lugar na loteria das adaptações.