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Crítica

O Clube da Meia-Noite não dá medo e nem assusta, mas é fascinante

Mike Flanagan pega na mão do público adolescente e o leva por uma história de susto, medo, cultura pop e gêneros cinematográficos

10.10.2022, às 08H51.
Atualizada em 10.10.2022, ÀS 09H40

A ideia para a criação do livro O Clube da Meia-Noite surgiu na vida do escritor Christopher Pike de uma forma emblemática: ele conheceu uma de suas leitoras, que enfrentava um câncer e costumava se reunir com amigos para ler e comentar suas obras. A jovem leitora apresentou a Christopher o seu “Clube da meia noite” (chamado exatamente assim por ela) e pediu que ele escrevesse um livro sobre ele. Christopher escreveu a toque de caixa, para que ela pudesse vê-lo publicado; mas, infelizmente, a menina faleceu um dia antes dos originais ficarem prontos.

O que estava nas páginas do livro era a história de Ilonka (Iman Beson); uma estudante que acabava de descobrir um câncer, e após uma pesquisa por tratamentos alternativos, seguia para Brightcliffe, uma espécie de retiro em que jovens sofrendo de doenças terminais viviam seus últimos dias. Ilonka, contudo, vai para lá em busca de respostas sobre a misteriosa Julia Jayne (Larsen Thompson), que foi supostamente curada no local. Ao chegar, Ilonka também descobre as reuniões diárias do Clube da Meia-Noite, quando os residentes se reúnem para contar histórias de terror.

O trabalho de Pike parecia movido por inspirações. Logo após ser publicado, ele finalmente decidiu dar uma entrevista e gostou tanto do resultado que decidiu publicar a mesma em seu Facebook. Suas palavras sobre o quanto era comovente que seus livros tivessem afetado positivamente tanta gente geraram uma série de comentários apaixonados. Um desses comentários terminava com a seguinte frase: “Cresci lendo seus livros e eles inspiraram meu trabalho. Hoje eu sou um diretor da Netflix”. Pike não prestou atenção no nome da pessoa que escreveu o comentário e foi preciso sua namorada lhe cutucar para que ele lesse mais atentamente. Era o nome de um dos diretores mais competentes do cenário do horror contemporâneo: Mike Flanagan.

Essa história de como O Clube da Meia Noite saiu do papel pode parecer corriqueira, mas faz bastante diferença quando se está falando do trabalho de um homem movido por referências (e pela paixão por cada uma delas). Mike Flanagan produziu três minisséries que fulguram entre os melhores títulos do catálogo da Netflix; sendo um deles – Missa da Meia-Noite – uma homenagem absolutamente perfeita a outro universo que ele conhece bem: o de Stephen King.

Flanagan tem em seu DNA criativo uma habilidade invejável de referenciar sem reproduzir; de sublinhar as fontes por onde passou durante sua vida de uma forma apaixonada, mas totalmente conectada a sua própria identidade artística. Ele passa por memórias tornando-as concretas na tela. Mas, elas compõem um quadro livre de pressões (se você não conhece elas não te atrapalham, mas se você conhece elas te abraçam como a um velho conhecido). A mente de Flanagan é um compêndio de músicas, filmes, quadros, que funcionam como tatuagens em sua formação, estando ali porque inspiraram e se tornando potências inspiradoras.

Faz sentido, então, que o diretor tenha decidido que depois do sucesso de Missa da Meia-Noite, o certo seria arriscar em outro território; desde que ele também fosse produto do mesmo processo de inspiração. Depois da densidade de Missa, o trailer hiper teen de Clube chegava a chocar. A ideia de ter Flanagan abandonando a complexidade de seu trabalho para satisfazer uma parte considerável da audiência da plataforma, era inconcebível. A Netflix se tornou a casa de muitos investimentos no público adolescente, nem todos eles dignos desse investimento, mas necessários para manter a roda girando. Mas, o Flanagan? Por que o Flanagan?

A resposta para essa pergunta já está nos parágrafos anteriores dessa crítica. Mike é um diretor e um roteirista movido pelo que absorveu em seus anos de formação. Decidir adaptar um livro que foi criado a partir da celebração de uma referência, não parecia tão “fora da curva” assim. O que ele tinha nas mãos era ambíguo: mover-se ligeiramente para além de sua zona de conforto, mas sem esquecer do que está na linha de frente da produção artística daqueles que se importam com as próprias emissões. Flanagan decidiu falar sobre adolescentes, para adolescentes, sem subestimar a capacidade deles de buscar significados além da primeira camada.

Assim, nasceu um projeto que até na sua logomarca já incute a ideia de que estamos diante de uma série acessível no campo do suspense e do horror, usando de elementos desses gêneros a favor de uma linguagem menos rebuscada. Não é à toa que as situações mais tensas da história não estejam acontecendo com os personagens centrais e sim com as pessoas inventadas por eles. Tudo em Clube da Meia-Noite é tão referencial que cada um dos internos de Brightcliffe cria seus fantasmas em bases diferentes, pavimentadas por códigos cinematográficos específicos. O romance, o drama, o sci-fi, o noir, o slasher...

Espertamente, Flanagan evita uma dose mais robusta de complexidade nos primeiros episódios – a ideia é atrair um novo público e manter em pauta o que já está conquistado. Para os que chegam, há o equilíbrio entre o mistério do lugar e a curiosidade das histórias do clube... Para os que retornam, Flanagan enche os episódios do mundo que vem construindo aos poucos, espalhando os atores que fizeram Missa em participações honrosas e divertidas; criando uma ponte sagaz entre as duas obras que compartilham o “meia-noite” do título. A partir da segunda metade da temporada os contos ganham substância e Flanagan abre espaço para mostrar tudo do que é capaz.

O Clube

Dentro do instituto em que foi buscar uns punhados de esperança, Ilonka encontra jovens que foram isolados por outros ou por si mesmos. Entre esses personagens, as figuras de Kevin (Igby Rigney), Sandra (Annarah Cymone), Spencer (Chris Sumpter) e Anya (Ruth Cood) são as que o roteiro desenvolve melhor. Kevin resguarda uma natureza sombria a despeito do mundo perfeito e privilegiado que o cerca; Sandra é uma cristã devotada; Spencer está à margem de uma sociedade que discrimina portadores do HIV com brutalidade (a história se passa em 1994); e Anya era uma bailarina que acabou com uma perna e um futuro amputados.

A cada episódio em que esses personagens vão contar suas histórias, eles injetam nelas seus traços de personalidade ou seus anseios secretos. O grande charme de O Clube da Meia-Noite está em desvendar o quanto de cada um está em cada história; e o quanto deles vamos desvendar dali em diante. Os roteiros são inteligentes, mantendo grande parte desse processo no campo da produção de sentido, como quando a menina cristã conta sua história num ambiente noir que é transgressor para ela, mas precisa terminar com otimismo; ou quando o jovem com HIV se imagina como um cyborg que não consegue se misturar entre os humanos como um igual. Nada disso é desenhado, mas é perceptível.

A melhor história da temporada, por exemplo, é aquela que traz Henry Thomas (o amuleto de Flanagan) pegando carona numa rua escura, no melhor estilo Stephen King de subestimar os riscos do que parece inofensivo; sem que tenhamos a menor ideia de que estamos diante de uma poderosa metáfora sobre desistir. Esse é um trabalho para adolescentes, então, por mais horrível que seja a base das histórias, elas acontecem em ambientes escolares, elas passeiam por temas como suicídio e AIDS, pela ótica segura de uma identidade teen. A melhor, é fato. Mas, ainda assim, é uma ótica teen.

Infelizmente, na reta final o ritmo perde fôlego e Flanagan não consegue resolver muito bem a mitologia que construiu. Há um mistério envolvendo a casa e seus antigos residentes, mas isso acaba tendo pouco apelo diante do ótimo trabalho no aprofundamento dos internos. Com seu jeitinho de focar em personagens específicos por episódio, Flanagan logo está amplificando a psique daqueles jovens de uma maneira mais rica e mais original do que quando se sente obrigado a usar velhas ferramentas para andar com a trama central – com seus fantasmas encarando em salas escuras e dando sustos vazios que o próprio roteiro já havia criticado.

Quando chegamos ao final (que é suficientemente vago para permitir uma nova temporada), aquela narrativa que começou como uma narrativa de esperança, se torna uma narrativa de conformidade. E então, é preciso lidar com a morte; e de uma maneira muito bonita, é hora de Flanagan imaginar o que está do outro lado, é hora de divagar sobre a nossa conexão com o infinito do pós-vida; essa angústia inevitável daqueles que viram a juventude ser impedida de se tornar velhice. A leitora de Christopher Pike morreu antes de ler o livro que ela inspirou... A morte não é uma fantasia; ela é a forma que o universo encontrou de tornar valiosa a experiência da vida, por mais curta que ela seja. Nada vem em vão, nada passa em vão. No fim das contas, quem morre também vira referência. O Clube da Meia-Noite é sobre você ser tudo que já viu... e sobre todos que você um dia ainda vai inspirar. 

Nota do Crítico
Ótimo