Visto de fora, o Barra Diamond parece a escolha ideal para a classe média que procura um lugar seguro e tranquilo para criar seus filhos. O condomínio fictício da série Os Outros, no entanto, é um caldeirão prestes a explodir a qualquer momento graças a seus próprios moradores. Ali, uma briga de adolescentes na quadra de futebol é, ao mesmo tempo, estopim de uma vertiginosa espiral de acontecimentos violentos e um sintoma de que algo vai mal com todos os envolvidos. É na área comum entre espaço público e privado que a ferida se escancara, mas um dilema se impõe - é sempre o outro que destrói o casamento alheio ou que impede alguém de conseguir um emprego. Nunca ninguém tem responsabilidade pelas próprias ações.
Com referências a filmes como Deus da Carnificina e Relatos Selvagens, a primeira temporada da série do Globoplay é precisa na construção minuciosa desse universo e se sai muito bem ao flertar com o terror para retratar o ciclo da violência em cada lar e nas difíceis relações entre os moradores. Tensa em cada cena, a produção se sustenta nas sólidas estruturas dos roteiros assinados por Lucas Paraizo, criador da atração, Fernanda Torres, Flavio Araujo, Pedro Riguetti, Bárbara Duvivier, Thiago Dottori e Bruno Ribeiro.
Cada um dos 12 episódios começa com um close em um personagem diferente olhando diretamente para a câmera, como quem se observa em um espelho, e carrega desde então um ar de mistério. O efeito imediato é manter o espectador curioso pelo que vai acontecer em seguida, mas essa estrutura não deixa de ser em si uma provocação: quão rapidamente formamos nosso julgamento sobre os protagonistas e suas decisões apenas com fragmentos de informações? A série traz um desenho da temporada muito inteligente, com uma dinâmica de roteiro que consegue revelar pouco a pouco novas camadas sobre os personagens e, muitas vezes, mudar nossa visão sobre cada um e a história que está sendo contada.
Isso fica muito claro quando a trama aborda situações extremas, como uma mãe comprando uma arma para defender o filho e, um pouco mais adiante, sendo vítima de um abuso. Mas também é muito certeira em escalas menores, como no sétimo episódio, em que os arqui-inimigos Cibele (Adriana Esteves) e Wando (Milhem Cortaz) tomam atitudes autoritárias muito semelhantes, ou no 11º, quando um flashback ilumina a superproteção dela sobre Marcinho (Antonio Haddad). Dar mais contexto aqui não significa justificar suas atitudes, mas, de algum modo, compreender como as coisas chegaram àquele ponto.
Alguns ângulos de enquadramento em Os Outros podem causar estranheza em um primeiro momento, mas as escolhas estéticas da equipe chefiada pela diretora artística Luísa Lima, em parceria com Lara Carmo, vão muito além de um impacto puramente visual. Nesse ambiente em que os diálogos são extremamente difíceis, muitas das conversas acontecem sem a tradicional alternância entre plano e contraplano tão frequente na TV, com apenas um personagem em destaque, isolado ou emoldurado pelas paredes do próprio apartamento. Também vale destacar o que fica de forma proposital fora de quadro, como o tapa de um marido na esposa - a agressão que não se vê, mas se sente. Vários episódios de violência doméstica são, de fato, invisíveis e se beneficiam disso para continuar existindo.
Entre os atores, merece destaque o trabalho de Eduardo Sterblitch, que constrói um Sérgio ameaçador como o papel pede, sem perder a pegada cômica do humorista, apenas numa chave diferente, que transforma o deboche em mais uma de suas armas. Esse personagem e o de Lúcia (Drica Moraes, excelente), aliás, são as peças chaves para alicerçar a complexidade das relações estabelecidas pela série e que ultrapassam o nível familiar, trazendo à tona discussões sobre corrupção e milícias e tornando o enredo ainda mais tenso.
O elenco afiado traz ainda Adriana Esteves e Milhem Cortaz, impecáveis como personagens de pólos opostos, mas ainda muito parecidos. Maeve Jinkings e Thomás Aquino, por sua vez, ficam com a dura de missão de mostrar força por baixo das aparentes fragilidades de Mila e Amâncio e entregam ótimas performances. Entre os personagens jovens, Paulo Mendes se sobressai ao encarar com firmeza as cenas difíceis do agressivo Rogério, mas Antônio Haddad, como Marcinho, e Gi Fernandes, como Lorraine, também dão conta do recado.
A série já tem uma segunda temporada confirmada pelo Globoplay e apenas alguns dos personagens vão retornar, em um outro cenário, outro contexto. Resta saber que tipo de inferno será esse, causado, claro, pelos outros.