A cada três meses testemunhamos a estreia de dezenas de novos animes que surgem para ocupar o espaço de outras centenas de títulos lançados nos últimos anos. E embora sempre exista a busca pelo novo anime de lutinha ou pelo novo “seinen psicológico”, há alguns animes que mantém a etiqueta de “clássico” não importa quanto tempo passe.
Monster é classificado como fundamental para quem gosta de um bom thriller, o anime aparece muito bem ranqueado em avaliações de fãs e agora com o lançamento na Netflix os brasileiros têm uma oportunidade oficial de assistir a este clássico.
Naoki Urasawa e o Monstro
Monster é uma criação de Naoki Urasawa, aclamado autor de mangás para adultos especializado em histórias envolventes, tensas e cheias de reviravoltas (às vezes até demais). Como podemos esperar de qualquer autor de mangá nascido nos anos 1960, Urasawa era muito fã dos trabalhos de Osamu Tezuka e isso, de alguma forma, influenciou seu trabalho. Ele se tornou profissional em 1980 quando ganhou uma competição de novos talentos da editora Shogakukan e desde então não parou mais. Curiosamente, seu primeiro sucesso acabou sendo com um mangá bem diferente do gênero que lhe traria fama: em vez de suspense, Yawara! (1986) era um mangá sobre judô feminino e conflitos geracionais.
Foi com Master Keaton (1988-1994), feito em parceria com Hokusei Katsushika e Takashi Nagasaki, que Urasawa se aventurou pelas histórias mais densas. A partir daí vieram clássicos como Pluto (2003-2009), Billy Bat (2008-2016), 20th Century Boys (1999-2007) e, claro, Monster (1994-2001). Observar as datas de publicação desses títulos citados entrega uma outra característica de Urasawa: ele tem o costume de publicar mais de um mangá simultaneamente, algo que já lhe trouxe alguns problemas de saúde.
Monster é uma história simples, mas profunda em suas nuances e discussões. O protagonista é o Dr Kenzo Tenma, um neurocirurgião japonês trabalhando em um hospital alemão, e a trama se inicia quando Tenma decide operar uma criança vítima de um massacre, indo contra a decisão da diretoria do hospital, que preferia o médico operando o prefeito da cidade por motivos de visibilidade. A morte do político leva Tenma cair em desgraça dentro do hospital, mas misteriosamente todos os seus desafetos acabam assassinados ao mesmo tempo. A coincidência transforma o médico japonês no principal suspeito do crime, mas o culpado na verdade é outra pessoa: Johan Liebert, a criança salva pelo doutor.
Toda essa trama surreal é traçada no primeiro volume de Monster, que no total tem 18 tomos. Nas edições seguintes acompanhamos a jornada de Tenma para investigar o passado dessa criança, que vem a ser o “monstro” do título, e também encontrar personagens relacionados ao jovem. Mas o verdadeiro objetivo do médico é dar fim ao rastro de destruição causado por Johan, nem que para isso seja necessário matar o jovem psicopata. Ou seja, é uma história de gato e rato ambientada em uma Alemanha durante a Guerra Fria.
A ideia de situar Monster neste cenário e nesse momento histórico veio quando Urasawa conversava com seu editor na época. Por publicar em uma revista para leitores adultos, o editor acreditava que histórias em cidades europeias poderiam atrair essa faixa demográfica. A Alemanha também foi escolhida como palco de Monster porque há uma relação direta entre a medicina japonesa e a alemã, além de possibilitar a aparição de temas como o movimento neo-nazista.
A ideia de criar uma série sobre um médico correndo para provar sua inocência em uma acusação de assassinato não é inédita. Entre 1963 e 1966 o canal norte-americano ABC produziu a série The Fugitive ("O Fugitivo" em português) cujo mote é semelhante: um médico era acusado de tirar a vida de sua esposa e precisava se livrar das acusações criminais enquanto era perseguido por uma figura da lei. A série foi exibida no Japão nos anos 1960 e foi um grande sucesso, e Urasawa declarou que foi uma inspiração para a história que criaria décadas depois. E olha que ele tinha apenas 8 anos de idade na época da exibição!
O mangá de Monster fez um grande sucesso no Japão e no mundo, a ponto de ganhar prêmios importantes em vários países. Aqui no Brasil ele foi lançado em algumas ocasiões diferentes: em 2006 a editora Conrad iniciou a publicação, mas cancelou o título (e vários outros) em meio a uma crise interna. Em 2012 o título passou para a mão da Panini, que publicou os 18 volumes originais, e em 2019 o mesmo mangá ganhou um tratamento de luxo com o lançamento de Monster Kanzenban, que recompilou a história em 9 volumes
O anime obrigatório
Uma história de sucesso não ficaria exclusivamente no formato de quadrinhos, ainda mais no Japão. Por isso, em 2004, a Madhouse (de Card Captor Sakura) foi escolhida para adaptar Monster para o formato anime, e a escolha do estúdio não poderia ter sido mais acertada.
A série chama a atenção pela fidelidade ao original. O clima, ambientação, tensão e tudo criado pelo autor para a versão em quadrinhos foi transposto pelo diretor Masayuki Kojima de forma quase perfeita para a versão animada, e ainda conseguiram incrementar a obra com uma trilha sonora de muita qualidade assinada por Kuniaki Haishima. Ambos já conheciam bem o estilo do autor Naoki Urasawa, afinal trabalharam juntos na versão anime de Master Keaton, a primeira obra do gênero feita pelo autor. Toda a história de Monster rendeu 74 episódios, com a exibição se encerrando na Nippon TV em setembro de 2005.
Monster é um daqueles animes sem pressa para desenvolver as tramas, que recorre a silêncios, momentos contemplativos e muitos raciocínios de personagens. O espectador é facilmente capturado pelo desejo de Justiça do doutor Tenma, e é transportado para aquela Alemanha da ficção enquanto o doutor caça o jovem que lhe causou tanto mal. O questionamento moral sobre o médico decidir assassinar seu paciente vai mexendo não só com a história, mas também com a cabeça do protagonista, que vai ficando mais abalado a cada novo acontecimento.
Além de possuir qualidades necessárias para agradar o otaku de carteirinha, Monster tem como característica principal "não parecer um anime”, ou pelo menos não o que o público leigo enxerga como anime. Com um jeitão mais próximo de uma série ocidental de carne e osso, embora ainda tenha muitos elementos comuns dos quadrinhos asiáticos, Monster acaba sendo uma boa pedida para introduzir uma pessoa leiga no mundo dos animes e mangás. O sucesso de Naruto ou Demon Slayer às vezes faz o público de fora achar que animação japonesa se resume a homens musculosos portando uma espada e soltando poder pelas mãos, então histórias mais “pé no chão” como Monster oferecem uma visão mais ampla dessa mídia que é tão diversa.
A história de Monster tem um clima tão “ocidental” que Guillermo del Toro tentou vender a ideia de uma série de Monster para a HBO, mas o projeto foi negado em 2015 e desde então não temos novas informações sobre a ideia. É possível que ainda exista um plano para uma versão ocidental, mas aí é sentar e esperar… Alita - Anjo de Combate levou décadas para ser lançado e o tal live-action de Akira não deu as caras até agora.
Nos últimos anos Naoki Urasawa e seu Monster furaram algumas bolhas e atingiram um público além do otaku. Em 2019 aconteceu na Japan House de São Paulo a exposição Isto é Mangá, que trouxe ilustrações originais do autor, além de palestras temáticas sobre o meio de anime e mangá no Brasil, já em 2021 por algum motivo o anime de Monster se tornou muito popular no Tiktok, com pessoas compartilhando trechos do anime e criando clipes usando os personagens da obra, como o controverso antagonista Johan. Talvez até esse interesse repentino tenha incentivado a Netflix a adquirir os direitos do anime, vai saber.
Vale a pena assistir na Netflix?
Embora obrigatório, quem for assistir a Monster em 2023 pode encontrar algumas pedras no caminho, como a própria duração da série. Com animes cada vez menores, uma produção com 74 episódios pode afastar quem busca uma experiência mais contida. Pesa também contra a obra de Naoki Urasawa o ano de sua produção, pois um anime de 2004 tem uma qualidade visual bastante aquém para os padrões de hoje.
Além de ser uma série feita na proporção 4:3 (aquela mais quadrada), algo que incomoda parte do público mais novo, Monster nunca ganhou uma remasterização, o que faz o ato de assistir ao anime pela Netflix um exercício de desapego estético. Embora os designs, animação e trilha sonora estejam com o selo Madhouse de qualidade, assistir ao anime em uma TV HD ou em um smartphone pode causar um desconforto por conta dos serrilhados. Isso porque nem estamos falando sobre o fato da Netflix ter colocado Monster no catálogo sem uma dublagem em português, decisão que poderia ajudar a popularizar a série.
Mesmo com esses pequenos pontos negativos, Monster ainda é um anime indispensável. Se de um lado o otaku experiente consegue conferir a narrativa de um dos mestres do mangá, quem não é tão chegado em animes terá com Monster a chance de ficar hipnotizado com a ambientação densa de uma série que não deve em nada para muita produção live-action que faz sucesso atualmente.
E caso prefira acompanhar em leitura, a versão em quadrinhos é igualmente obrigatória e pode ser encontrada no catálogo da editora Panini. Caso queira acompanhar mais obras de Naoki Urasawa, aí já é preciso um pouco de sorte para achar edições de 20th Century Boys e Pluto, os outros títulos do autor lançados no Brasil.