Houve um tempo em que uma parcela da turma nerd gritava aos quatro cantos: "coisa brasileira não presta". Podia ser cinema, TV, quadrinhos ou qualquer outro produto de entretenimento. Isso não importava, desde que desmerecer nossa cultura estivesse na primeira linha de qualquer comentário. Isso é uma generalização, claro, afinal também já passei pelo senso comum e hoje penso exatamente o contrário. Existem muitas produções excelentes em territórios tupiniquins, impulsionadas nos últimos anos por incentivos culturais do governo (vide a obrigatoriedade de canais a cabo produzirem séries nacionais).
No cenário independente, o relativo barateamento dos custos de produção de qualquer coisa relacionada ao mundo do entretenimento e a facilidade de disseminação em tempos de mídias sociais, tivemos também o surgimento de boas histórias. Uma delas, falando especificamente do nicho LGBTI, é TupiniQueens, um documentário sobre a atual cena drag brasileira e paulista.
O nome do filme em si já chama a atenção por mesclar o 'tupiniquim' com o 'queen', deixando claro logo no título que se trata de uma história sobre drag queens brasileiras que, apesar da inspiração estrangeira da arte, se expressam com identidade própria e local. É exatamente isso que o filme transmite ao longo de seus 90 minutos e o que João Monteiro, diretor, queria levar ao público.
Já falei numa coluna anterior sobre a importância de RuPaul na ascensão da arte drag e como as drag queens estão se tornando ícones pop. Partindo da influência de RuPaul's Drag Race, TupiniQueens registra o atual momento histórico da arte drag nacional, um momento em que novas artistas surgem e ganham espaço enquanto convivem com as estrelas do reality show. É um filme que faz um paralelo entre o passado das drags com Márcia Pantera, que inicia o filme, parte para as novinhas da cena como Trio Milano e Gloria Groove, passa pelas experientes, mas desconhecidas, como Lorelay Fox, e parte para as drags americanas mostrando quem é quem no que João Monteiro chama de novo boom.
O filme foca na cena drag paulista e além de contar as histórias de seus personagens, aborda de forma sensível pontos importantes para quem ainda não conhece a cena e para quem quer conhecer algo mais a respeito do assunto. As histórias pessoais das drags, mixadas com temas polêmicos como gênero e aceitação, fazem do filme uma ode de humanização das drag queens. "É a verdade da história. Humanizar era nossa intenção, assim como a Rupaul humanizou essas figuras para nós", diz Monteiro.
"É atraves das drags que apresentamos os temas do filme e cada uma delas traz um tema especifico, além de falar de si e de como é relevante para a cena", diz Monteiro.
O filme trabalha também a questão do preconceito com as drags dentro do próprio mundo gay. Penelopy Jean fala sobre como alguns gays não gostam de namorar meninos que se montam. É uma amostra do machismo que atinge, pasmem, o mundo gay com a rejeição de características femininas. "Existe uma supervalorização da masculinidade no universo gay, né? E isso vem caindo por terra pouco a pouco, pois agora a galera tá 'sou afeminada e curto mesmo' e chamando isso no peito. Acho super legal. Esse é um movimento que ajudou a quebrar a barreira de lidar com a feminilidade dentro do universo gay", diz Monteiro.
TupiniQueens é o primeiro longa de Karol Bueno, produtora, e João Monteiro no cinema. No 23 Festival Mix Brasil de Cultura da Diversidade, a bilheteria esgotou antes mesmo do evento começar. Na segunda exibição, no Centro Cultural São Paulo, mais de cinquenta pessoas foram para casa sem conseguir assistir ao filme, pois os ingressos esgotaram em 15 minutos. No momento o documentário percorre um circuito de exibições em cinemas alternativos e festivais.
Para o filme funcionar em sua totalidade, os personagens escolhidos foram muito importantes para criar a atmosfera e o retrato ideal do momento em que vivemos. Malonna, por exemplo, é a personagem mais interessante e marcante de todo o longa, abordando a história drag e as questões políticas e mais complexas que envolvem o assunto. A participação da personagem é o momento de aprofundamente da trama, o momento do mergulho na cultura drag como causa social e luta de representatividade LGBTI.
Outras drags retratadas são Amanda Sparks, Ikaro Kadoshi, Samantha Banks e Tiffany Bradshaw. Quanto às 'gringas', Adore Delano, Alaska Thunderfuck 5000, Latrice Royale, Milk, Raja e Shangela dão o ar de suas presenças. E por qual motivo elas estão no filme? Para fazer o contraponto entre figuras famosas e aquelas que estão ganhando a cena, crescendo e aparecendo. Não é à toa que as garotas de RuPaul aparecem apenas em PB enquanto as tupiniqueens são retratadas com cores vibrantes.
TupiniQueens acerta ao humanizar personagens drags, contar suas hitórias e registrar este momento histórico que a cena brasileira e paulista vive. Acerta por mostrar como a cultura drag está deixando de ser marginal, se transformando em algo pop e invadindo o mainstream. TupiniQueens acerta por conseguir capturar o espírito do momento e emocionar contando grandes histórias. E quem disse que o produto nacional LGBTI não é de qualidade, né meu povo? Uma tapa na cara da sociedade.
Por hoje é só! Um bayjo e um quayjo.
P.S.: Se quiser saber mais sobre os bastidores do filme e curiosidades de sua produção, clique aqui para ler uma entrevista completa com João Monteiro e Karol Bueno.
Confira abaixo as próximas exibições, divulgadas com exclusividade para a Gay Nerd por Karol Bueno, produtora do filme. Para mais informações, acesse a fanpage de TupiniQueens no Facebook.
17/02, quarta-feira, às 20h. CineClube Fradique. São Paulo - SP
20/02, sábado, às 19h. Cine Olido. São Paulo - SP
24/02, quarta-feira, às 20h. CineClube Fradique. São Paulo - SP
10/03, quinta-feira, às 18h20. CineClube Laerte (Cine Arte UFF). Niterói - RJ
17/03, quinta-feira, às 20h. Polo Avançado do Sesc. Araçatuba - SP
19/03, sábado, às 22h. CineClube Lumiar. Franca - SP
24/03, quinta-feira. CineClube Catavento/MIS. Campinas - SP
14/05, quarta-feira, às 19h30. Cinemateca de Curitiba. Curitiba - PR
Adotamos a sigla LGBTI por ser a mais completa para se referir à diversidade de gênero e identidade sexual nos dias atuais. O T se refere a "TRANS" (travestis, transexuais e transgêneros) e o I a "Intersexual", pessoas com características de ambos os sexos e que podem se reconhecer como homem ou mulher, independente das características físicas. Esta definição é contribuição do leitor Vinícius.
*Gay Nerd é uma coluna quinzenal que mistura nerdices aos temas LGBTI
Isaque Criscuolo é editor do Imerso, nerd, adora um lipsync e acredita que menos é mais