Bastam poucos minutos de busca em comunidades nerd na internet para encontrar dezenas de mensagens reacionárias condenando qualquer tipo de representatividade em filmes, séries e quadrinhos. Normalmente, comentários deste tipo são compartilhados pelos autodenominados “nerds raiz”, fãs saudosistas que, por birra ou ignorância, insistem que a cultura pop não abordava questões sociais e políticas há 30 ou 40 anos. Essa nostalgia torta costuma vir acompanhada de imagens de Sylvester Stallone e Arnold Schwarzenegger no auge da moda dos “filmes brucutu”, quando “homens eram homens” e transavam enquanto fumavam charuto e davam tiros em minorias. Ciente dessa sede pela volta do macho-alfa porradeiro, James Gunn decidiu transformar o Pacificador, um personagem do mais baixo escalão da DC, em tudo o que esse público queria: um gigantesco soldado impiedoso e politicamente incorreto com o senso crítico de um adolescente.
O cineasta já havia ensaiado uma crítica a essa visão em O Esquadrão Suicida, quando adotou tropes oitentistas para mostrar a violência causada pela política intervencionista norte-americana. Vivido por John Cena, o Pacificador de Gunn se tornou o principal avatar da vilania do governo dos Estados Unidos, um desenvolvimento que se manteve na série que ele protagoniza na HBO Max. Acontece que, na nova produção, o diretor vai muito além da crítica subjetiva e transforma todo o pensamento do “nerd raiz” em escárnio.
Já nos primeiros minutos de Pacificador, o personagem titular é explicitamente acusado de racismo, e responde com a absurda justificativa “também mato pessoas brancas”. Depois desse primeiro momento, não demora para Gunn associar os preconceitos do mercenário à sua incompetência e ignorância política. Criado por um supremacista branco para matar “comunistas, negros, católicos, judeus ou algo assim”, o Pacificador acredita em teorias conspiratórias compartilhadas no Facebook, se recusa a aceitar que está sendo machista por “apenas” comentar sobre o corpo de uma mulher e precisa reafirmar sua masculinidade com frequência. Para deixar sua sátira ainda mais clara, Gunn usa expressões frequentes no vocabulário do conservador de internet, como “simp” (usado para definir homens submissos ou “afeminados”) e “homens de verdade”.
Além de zombar da estupidez do Pacificador - e do tipo de público que ele representa -, Gunn também mira em suas inseguranças. Apesar de afirmar sempre que tem a chance que representa o ápice físico e intelectual humano, o mercenário tem extrema dificuldade para lidar com rejeição, seja de uma parceira de equipe ou de um oponente. Nas raras vezes em que se conecta com seus sentimentos, ele o faz no isolamento - e inclusive morre de vergonha quando é “pego”. Há uma imaturidade emocional quase infantil no protagonista, que, assim como muitos perfis online, tenta disfarçar tristeza ou medo com uma agressividade exagerada mal apontada.
Agentes do status quo
Seguindo o paralelo, Pacificador traz algumas figuras com uma visão bem extremista do significado de justiça. O personagem-título, por exemplo, se vê como um grande herói americano e justifica os assassinatos que cometeu ao longo da vida como um esforço para manter a paz dentro do país que nasceu. Esse discurso hipócrita é típico de sociedades conservadoras, que veem no punitivismo uma forma justa de manutenção da “lei e ordem”.
No Brasil, inclusive, tem sido frequente já há algum tempo ouvir a frase “bandido bom é bandido morto”, personificado por Gunn na forma do Vigilante (Freddie Stroma) fã do Pacificador que adota métodos semelhantes no que chama de luta contra o crime. Tão aficcionado por violência quanto qualquer criança impressionável, ele deixa claro repetidas vezes que está disposto a matar qualquer um pelo menor dos motivos.
Trabalhando para Amanda Waller (Viola Davis), outra personagem disposta a cometer atrocidades para alcançar seus objetivos, a dupla de mercenários encontra na luta pelo “bem maior” a justificativa para aplicar seu discurso supremacista. Embora sejam caricaturas exageradas tiradas de gibis, Vigilante e Pacificador são figuras que podem infelizmente ser encontradas no mundo real, seja reproduzindo discursos de ódio de trás de um teclado ou agredindo pessoas inocentes na rua.
Embora se divirta inserindo personagens bizarros em situações absurdas, Gunn soube aproveitar a liberdade criativa que lhe foi dada em seus projetos mais recentes para mirar em alguns dos indivíduos mais tóxicos de seu próprio público-alvo. Sem cerimônias, o cineasta ridiculariza os tais fãs raiz na esperança de torná-los conscientes da própria estupidez.