Ah, 2019... O mundo parecia tão mais simples uns seis meses atrás. 2019 foi um grande ano para o cinema americano, de O Irlandês a Era uma vez em Hollywood, e ao redor do mundo se produziu muita coisa notável que acabou passando batido nas premiações, nos cadernos culturais, nas conversas de bebedouro. Nas dicas desta semana, eu seleciono sete filmes que foram produzidos entre 2018 e 2019, lançados comercialmente ano passado, e que agora estão disponíveis nos meios digitais.
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A seleção abaixo é uma singela homenagem a Amazing Grace, o documentário musical "perdido" de Aretha Franklin que chegou à locação digital na semana passada - e é uma experiência transcendental de se ver e ter. Registro de um show de 1972 em que a Rainha do Soul se apresentou por duas noites numa igreja batista de Los Angeles, Amazing Grace ficou embargado por 50 anos, fruto de uma disputa judicial, e terminou liberado ano passado após a morte da cantora em 2018. Esta edição da newsletter foi montada ao som de Aretha e Amazing Grace - que pode ser considerado um lançamento de 2019 - é um dos maiores filmes do ano. Boas sessões e não deixe de assinar nossa newsletter para receber as dicas antes de todo mundo.
Amanda
O luto é um dos temas mais antigos das narrativas humanas, mas o filme de Mikhael Hers oferece uma experiência tão profunda sobre a perda e a superação que parece ter tomado para si esse tema, com muita propriedade, como se fosse a maior novidade. Na trama, um jovem parisiense, de bem com a vida, se vê numa situação em que precisa cuidar da sobrinha, chamada Amanda. A maneira sensível mas contundente como Hers filma a garota num momento de absoluta vulnerabilidade e também de intensas descobertas é marcante demais.
Disponível no Telecine Play.
Mademoiselle Vingança
Bastou um par de filmes para o ator Emmanuel Mouret se firmar como um roteirista e diretor de ótimas comédias de costumes francesas, e este relato de época não é diferente. Mouret tem um olho bom para hipocrisias e melancolias da burguesia, sempre com uma câmera localizada precisamente para acompanhar o texto ácido. Aqui, ele adapta um romance de 1784 sobre uma viúva que planeja se vingar de um pretendente mulherengo, e o resultado é como um A Favorita sem todas aquelas afetações de estilo do queridinho do Oscar.
Disponível na Netflix.
Amor até as Cinzas
Quando despontou na virada do século, Jia Zhang-ke se tornou logo o principal cineasta chinês de documentários e docudramas que enfocavam a velocidade das transformações sociais e de paisagem do país. Na última década, ele tentou misturar esse registro a tramas de gênero com pegada de thriller, e Amor até as Cinzas é o filme mais bem resolvido dessa safra. Acompanhamos párias sociais numa história que poderia estar num filme de máfia americano (o período de 20 anos lembra as histórias geracionais de um Coppola ou um Scorsese), mas como se trata da China continental o que se vê são tipos embriagados pela mudança vivendo à deriva num mundo em plena desconstrução moral e material.
Disponível no Telecine Play.
Peterloo
Numa época em que a democracia e nossos códigos de representação política são colocados em dúvida, esse filme é uma lembrança agridoce de que a política pode muitas vezes ser um exercício vazio de vaidade e autoimportância que não tem muito a ver com as urgências da realidade. O diretor Mike Leigh consegue traduzir bem em enquadramentos de cinema sua tendência para a teatralização das coisas, e Peterloo ao mesmo tempo é uma narrativa brutal sobre o autoritarismo e também uma fábula iluminada sobre sonhar com dias melhores.
Disponível na Amazon Prime Video.
Temporada
Nos últimos cinco anos, boa parte da produção de destaque do cinema brasileiro veio da região mineira de Contagem, onde a produtora Filmes de Plástico conseguiu dar vazão a histórias de urgência em cenários urbanos de forma bem desafetada. Enfocado em uma mulher encarregada de visitar casas para conscientizar contra a dengue, Temporada é um desses filmes, um olhar bem sensível para o lugar que as pessoas ocupam nas margens das grandes cidades, e sobre como distâncias moldam nossas relações sem que a gente perceba. Em tempos de quarentena é um filme bem interessante de ver e revisitar.
Disponível na Netflix.
Varda por Agnès
No fim da vida, a cineasta francesa Agnès Varda ganhou um novo reconhecimento na mídia por conta dos relatos memorialistas e sentimentais dedicados à sua figura, e de repente Varda se viu refém dessa caricatura de doçura que se desenhou ao seu redor, principalmente depoois do filme Visages, Villages, de 2017. Porém, quando faz filmes sobre si, Varda, principal diretora da Nouvelle Vague francesa, pode ser implacável consigo mesma como era frequentemente nos seus dramas mais celebrados, e Varda por Agnès mistura muito bem a doçura com um balanço pessoal sem condescendência.
Disponível no Telecine Play.
Mestre Z: O Legado de Ip Man
Principal série de filmes de artes marciais da atualidade, Ip Man ganha neste capítulo uma veia de entrada bastante acessível para quem não conhece o resto da cinessérie ou normalmente não assiste à produção de blockbusters chineses. Dave Bautista atua nas melhores lutas de sua carreira de ator graças ao trabalho do diretor Yuen Woo-ping (famoso no Ocidente por ter sido o coreógrafo de Matrix), e a trama é bem tranquila mesmo para quem não sabe diferenciar Wing Chun, Kung Fu e Tai Chi Chuan. Um filme plenamente recompensador para quem aprecia a arte da mise-en-scène mais pura: como filmar corpos em cena, suas interações, seus potenciais para preencher o espaço à volta.
Disponível na Netflix.