Duna é um dos livros de ficção-científica mais importantes da literatura e, em 2021, o livro vai ganhar uma adaptação pro cinema pelas mãos do diretor Denis Villeneuve. Mas essa não é a primeira vez que a Paul Atreides chega em outras mídias.
Essa história já virou jogo de videogame, quadrinho, minissérie e até um outro longa dirigido por David Lynch, lá nos anos 80. Mas a primeira tentativa de adaptar o clássico para as telonas veio em 75, quando um diretor rebelde queria criar um filme que mudaria o mundo. Neste Retrato Omelete vamos falar de Duna de Jodorowsky, o maior filme que nunca foi feito.
Em 1965, o jornalista e escritor Frank Herbert decidiu unir seus interesses por ecologia, Oriente Médio, espaço, religião e líderes carismáticos na mesma narrativa. Como resultado, Herbert escreveu o livro de ficção científica mais vendido na história, Duna, contando a história de Paul Atreides, um jovem que se vê num conflito político pelo domínio político no planeta Arrakis.
Esse resumo pode dar a impressão de que a trama seja simples, mas Duna tem uma série de nuances e complexidades que tornam o livro um clássico. Em 1975, a obra chegou muito perto de ser adaptada para as telonas, comandada por Alejandro Jodorowsky.
Nascido no Chile, o diretor teve alguns anos de experiência em teatro experimental antes de migrar pro cinema, em que ficou famoso por seus projetos estranhos. El Topo, de 1970, alavancou sua carreira de diretor graças a seu faroeste surrealista, cheio de cenas de sexo, violência e simbolismos religiosos. Após fazer vários projetos de sucesso, Jodorowsky decidiu que queria adaptar Duna apra os cinemas. O problema é que ele nunca tinha lido o livro, só tinha escutado um amigo falar. Foi só depois de selecioná-la como seu próximo projeto, que o diretor comprou uma cópia e começou a estudar a história.
Felizmente, Jodo se identificou com os temas do livro e se sentiu inspirado como nunca antes. Ele queria fazer o maior filme da história e criar uma espécie de messias cinematográfico. Segundo ele, a proposta era que, quando os jovens assistissem sua versão de Duna, suas consciências se expandissem.
O projeto
Sua versão do roteiro era bastante diferente da história original. Nela, haviam girafas que andavam no teto, cenas com dois mil figurantes defecando simultaneamente e Paul nascia de forma imaculada, assim como Jesus Cristo. No final do seu roteiro, o protagonista morria e se tornava parte da consciência de todos os habitantes de Arrakis, até que o próprio planeta se tornava senciente e, no cenário que até então era desértico, nasciam plantas e mares. Por fim, Arrakis sairia pelo universo espalhando sua consciência pra outros planetas.
Qualquer fã dos livros pode notar que essa visão é bem diferente da abordagem de Herbert, que dizia em entrevistas - abre aspas “eu escrevi a série Duna porque eu tinha essa ideia que líderes carismáticos precisavam vir com um selo na testa escrito: pode ser ruim pra sua saúde”. A versão de Jodorowsky não estava interessada nessa nuance e simplesmente queria mostrar uma figura messiânica.
Com roteiro e conceito em mãos, Jodorowsky foi atrás de encontrar uma equipe de produção do filme, a quem ele chamava de seus “Guerreiros Espirituais”. O primeiro de seus colaboradores foi o quadrinista francês Jean Giraud, conhecido como Moebius. Jodorowsky se deparou por acaso com uma de suas HQs e ficou impressionado com o que viu.
Essa admiração foi recíproca quando os dois conversaram pela primeira vez e Jodo explicou o projeto. Giraud fez um storyboard de três mil páginas para o filme, além de desenhar outras imagens conceituais que ajudaram a estabelecer qual seria o conceito visual de Duna.
Mas ele não foi o único artista entre os Guerreiros Espirituais de Jodorowsky. O ilustrador Chris Foss, famoso por fazer as capas dos livros do Isaac Asimov, também integrou o time. O papel de Foss era desenvolver o design das naves espaciais, um elemento muito importante na visão de Jodo. O diretor queria que as naves tivessem visuais únicos entre si e cada uma deveria parecer um ser vivo, como insetos. Pra completar o time da arte, o jovem HR Giger foi convidado. Ele era especialista em criar figuras biomecânicas com um tom de horror e sua função seria justamente criar o planeta dos antagonistas do filme.
A ideia de chamar diferentes artistas pra pensar diferentes planetas não era exclusiva da parte estética do filme. Jodorowsky também queria aplicar essa lógica na trilha sonora. Ele chegou a contatar algumas bandas, pra cada parte da galáxia ter sua sonoridade própria, mas um grupo londrino ficaria responsável pela maior parte da música de Duna e faria um álbum especial com a temática do filme: nada mais, nada menos que Pink Floyd, que havia acabado de gravar o clássico The Dark Side of The Moon.
Em paralelo a equipe técnica, Jodorowsky também estava montando o elenco do filme - e ele conseguiu alguns nomes bastante impressionantes, como David Carradine, Gloria Swanson, Udo Kier e Mick Jagger. Além deles, Jodo visualizou outras duas estrelas que precisavam estar no seu filme a qualquer custo. A primeiro era Orson Welles, o diretor e intérprete de Cidadão Kane, que pra Jodorowsky era o ator ideal pra fazer o Barão Harkonnen, mas Welles não queria atuar no filme. Jodorowsky pediu para seu produtor descobrir qual era o restaurante preferido de Welles em Paris e ofereceu contratar o chef de lá pra fazer as refeições do ator enquanto durassem as gravações. Welles acabou aceitando.
A outra estrela que Jodo fazia questão de ter no seu filme era Salvador Dalí, pra interpretar o Imperador Padishah. Dalí estava interessado no papel, mas ele impôs uma série de exigências absurdas pra aceitar participar do filme. Por exemplo, seu personagem precisaria ter uma privada feita de dois golfinhos e elas teriam que ser usadas durante o filme, em uma cena explícita. Outra exigência é que ele não leria o roteiro e Jodorowsky teria que aceitar todas as ideias dele. Por último, Dali sonhava em ser o ator mais bem pago de Hollywood, então seu salário seria de cem mil dólares por hora.
Para o papel principal, o escolhido foi Brontis Jodorowsky, o filho de doze anos do diretor. O garoto precisou aprender uma série de artes marciais e treinar seis horas por dia, durante dois anos. Já que Jodo esperava que o filho se tornasse Paul Atreides tanto psicológica, quanto fisicamente. A equipe estava escolhida e conseguiram adiantar tudo que podia ser feito no papel antes de começarem a construir cenários, roupas e alugar equipamentos. Tudo que faltava agora era o dinheiro.
Os problemas
Duna precisava de quinze milhões de dólares pra ser realizado - um valor plausível pra um filme de grande porte pra época. O produtor Michel Seydoux já tinha reunido dez milhões, então eles só precisariam de um parceiro que distribuísse o filme nos Estados Unidos e bancasse os cinco milhões restantes.
Pra isso, enviaram pra todos os estúdios de Hollywood uma cópia da prova de conceito de Duna, que continha o roteiro, artes conceituais, o storyboard de três mil páginas e relatórios explicando como cada etapa do filme seria realizada.
Enquanto esperavam as respostas, a produção foi pausada no final de 1975 pra um recesso de fim de ano e nunca mais foi retomada. Todos os estúdios recusaram. Por mais que o material fosse interessante, eles não confiavam em Jodorowsky.
O diretor já tinha provado que podia fazer filmes comercialmente viáveis, por mais estranhos que fossem. Mas pra um projeto do porte de Duna, ele teria que fazer algumas concessões criativas e o diretor simplesmente se recusava a ceder - afinal, ele estava criando um messias cinematográfico.
Talvez o ponto que tenha sido mais prejudicial contra Jodorowsky foi que os estúdios pediam que o filme tivesse no máximo duas horas, mas o diretor insistia que Duna teria dez ou doze horas.
O legado
O longa que revolucionaria a indústria caiu por terra, mas teve seu impacto. Jodorowsky afirma que os estúdios usaram várias das ideias que estavam na prova de conceito pra aplicar em outros projetos, como Star Wars, Star Trek, Indiana Jones e os Caçadores da Arca Perdida, O Exterminador do Futuro e Flash Gordon.
Além disso, os membros da equipe de novatos que Jodo reuniu acabaram se tornando todos grandes nomes em Hollywood. Dan O’Bannon provavelmente foi quem mais se prejudicou com o cancelamento de Duna, já que ao se mudar pra Paris durante a produção do filme, ele vendeu tudo que tinha. Ele precisou da ajuda de amigos pra voltar pros Estados Unidos e passou um tempo morando de favor, mas nesse período, ele escreveu um roteiro que se tornaria um dos grandes clássicos do terror de ficção-científica: Alien, o oitavo passageiro.
O filme ainda contou com os três “guerreiros espirituais” de Jodo responsáveis pelas artes de Duna, incluindo Giger, que criou o famoso design do xenomorfo.
Jodorowsky e Moebius também voltaram a trabalhar juntos. Várias ideias que eles pretendiam realizar em filme, foram aplicadas nos quadrinhos no clássico O Incal.
É difícil imaginar se Jodorowsky conseguiria de fato realizar sua visão pro filme com a tecnologia da época e talvez Duna nem conseguisse virar “o maior filme da história”. Mas o projeto deixou sua marca em outras grandes obras. Assim como o Paul da versão de Jodorowsky, Duna de certa forma vive até hoje, através das obras que foram influenciadas por ele - incluindo o filme que chega em 2021 pelas mãos de Denis Villeneuve.