O apelido Pantera de Minas não começa a descrever quem foi Ângela Diniz. Sim, a socialite foi símbolo de beleza no Brasil, mas também já foi associada à ideia de uma mulher livre e sedutora. Foi pivô de polêmicas, assim como se tornou personagem da luta feminista. Foi mãe, esposa, filha, amiga e amante. Quer dizer, ela foi definida e redefinida várias vezes ao longo das décadas, inclusive depois de ser morta pelo então namorado, Doca Street. Assassinada com três tiros no rosto e um na nuca, Ângela foi de vítima à ré nos anos 1970, quando o país parou para acompanhar o julgamento do caso — e, no processo, também a condenou.
A atriz Isis Valverde, no entanto, é avessa à ideia de descrevê-la apenas desta ou daquela forma. Prestes a lançar Angela, longa que retrata o relacionamento abusivo da socialite com aquele que viria a ser seu assassino, ela acredita que sequer seja necessário fazê-lo. “Quando a gente quer encaixar nas caixinhas já definidas, inevitavelmente vamos deixar muitas camadas de fora”, afirmou, em entrevista ao Omelete, dias depois da estreia do filme no Festival de Gramado.
“Ela era tudo isso mesmo. Ângela foi esse universo, esse cosmo. Ou esse poço, como uma pessoa que a conheceu me disse. Você mergulhava nos olhos dela e ia afundando, afundando, afundando… Ela tinha um magnetismo, um carisma, uma melancolia, uma solidão. Era livre e gostava de exercitar essa liberdade. Amava os filhos e sofria muito com a distância deles. Não tem como dizer que ela era uma coisa só.”
Encapsular todas essas nuances em um trabalho ficcional já seria desafiador. Mas, no caso de um filme como Angela, em que a protagonista é uma pessoa real e reconhecível, adiciona-se ainda o risco de cair em uma imitação de trejeitos e posturas em vez de fazer um retrato de fato tridimensional. E esse era um deslize que nem Valverde, nem o diretor Hugo Prata tinham a intenção de cometer. “Nunca foi nossa proposta imitar a Ângela. Tanto que a escrita do nome é diferente no filme: Angela, sem o acento circunflexo. Acho que isso já denota que ali está uma interpretação dela, daqueles quatro meses que abrangem o momento em que ela e Raul se conheceram e o trágico desfecho dessa história”, explicou.
Para criar o que ela mesma chamou de “minha versão” da socialite, a atriz procurou fotos e vídeos para usar como referência para o visual, assim como recorreu ao podcast Praia dos Ossos durante a sua preparação. A família da Ângela Diniz, no entanto, não fez parte desse processo. “A filha dela deu a liberação para que a história fosse contada, mas ela não participou do desenvolvimento do roteiro nem de nenhuma outra etapa. É uma história muito dolorosa para todos eles.”
De fato, para além da dor atrelada ao luto e à gravidade do crime que a vitimou, este foi um caso de feminicídio amplamente debatido na imprensa, a ponto de se esquecer que Ângela era a vítima dessa história. E tudo isso graças à tese da legítima defesa da honra, usada pela defesa de Doca Street — tese esta que só se tornou inconstitucional no Brasil neste ano. O caráter dela foi, então, questionado e suas liberdades, incluindo a sexual, julgadas. Não à toa, o caso foi tão emblemático e se tornou pauta dos movimentos feministas no país, que conseguiram pressionar por um novo julgamento para Street com o lema “quem ama não mata”. Assim, a pena inicial de dois anos de prisão, dada em 1979, foi revisitada e atualizada para 15, dois anos depois.
“Carlos Drummond de Andrade escreveu uma frase sobre o caso que é verdade: ‘Aquela moça continua sendo assassinada todos os dias e de diferentes maneiras’”, lembrou Valverde. “Nós também, todos os dias. O machismo é tão enraizado que, ainda hoje, tem muita gente que acha que ela foi culpada pelo que aconteceu com ela.”
Ainda assim, Valverde não vê Angela necessariamente como uma obra de true crime — até porque o “gênero” estourou anos depois de Prata e o produtor Fabio Zavala começarem a discuti-lo. “A nossa vontade era contar a história da Ângela Diniz. Por isso, o filme não se aprofunda tanto no julgamento, por exemplo. Porque a partir do momento que ela morre, não é mais ela contando a história. É a história dela sendo contada por alguém. Não queríamos isso de maneira nenhuma.” Esta é a razão também para que o filme não se preocupe com a versão dos advogados de defesa do assassino: “Um crime foi cometido, uma mulher foi assassinada. Mostramos como foi esse caminho até que isso acontecesse.”
Estrelado por Valverde e Gabriel Braga Nunes, Angela chega aos cinemas em 7 de setembro.