Cena de 20 Dias em Mariupol (Reprodução)

Créditos da imagem: Cena de 20 Dias em Mariupol (Reprodução)

Filmes

Crítica

20 Dias em Mariupol tateia bem a linha entre reportagem e drama pessoal

Mstyslav Chernov monta narrativa de responsabilidade, desespero e culpa no documentário

Omelete
4 min de leitura
22.07.2024, às 09H29.

Que 20 Dias em Mariupol é um filme importante, você já deve estar cansado de saber. O documentário indicado ao Oscar 2024 faz crônica dos primeiros dias do cerco russo à cidade ucraniana do título, a partir do ponto de vista de Mstyslav Chernov, integrante do único grupo de fotojornalistas, trabalhando para a Associated Press, que permaneceu em Mariupol após as primeiras ofensivas do exército de Vladimir Putin. As imagens que Chernov e seus colegas fizeram, inflexíveis em seu retrato da violência e devastação urbana, se tornaram emblemáticas da guerra russo-ucraniana quando chegaram a veículos jornalísticos ao redor do mundo, e muitas delas se repetem aqui no filme - nem por isso diminuindo o impacto visceral que carregam.

Como costuma acontecer com filmes que são considerados importantes, no entanto, os méritos de 20 Dias em Mariupol como cinema se tornaram figurantes (quando sequer aparecem) nas discussões sobre ele. E é uma pena, porque esses méritos não são poucos. Diante do desafio de escolher o que mostrar e o que cortar de seus registros durante os titulares 20 dias, Chernov e sua montadora Michelle Mizner fazem um trabalho que tem muito mais a ver com cinema do que com jornalismo: o de encontrar uma linha narrativa para seguir em meio a esse retrato da destruição e da brutalidade da guerra, um senso para tirar de toda essa violência. E eles fazem isso porque entendem que não basta a 20 Dias em Mariupol ser um filme importante - ele precisa ser também, e fundamentalmente, um filme.

Nesse pique, o que Chernov nos escolhe contar é a história de um homem tateando no escuro, no meio de uma situação impossível, em busca da linha bem definida que lhe ensinaram existir entre profissional e civil, repórter e “ser humano”. Conforme a apreensão em Mariupol se transforma em resiliência, e depois desespero, a difusão dessa linha se torna cada vez mais irreversível - cada vez que Chernov chega em uma encruzilhada na sua cobertura da guerra, cada vez que precisa escolher entre ficar e registrar as consequências da invasão ou se abrigar em um lugar seguro, cada vez que tenta conversar com um cidadão ucraniano nas ruas e estender a ele as perguntas básicas do jornalismo (o quê, quem, quando, onde, por que)... enfim, cada passo do repórter em Mariupol é uma renúncia.

Não se trata, é claro, de diminuir a coragem de Chernov em fazer seu trabalho ou, por outro lado, de romantizá-la. Sua gana de seguir filmando e fotografando vem de um senso de responsabilidade profissional, sim, mas também de um senso de propriedade em relação à pátria, de um senso de revanche contra aqueles que a atacaram, de uma necessidade desesperada de avisar o mundo externo e conseguir ajuda, de uma culpa que corre profundamente dentro do coração de quem sobreviveu ao horror da guerra. E 20 Dias em Mariupol funciona porque sabe articular tudo isso com sensibilidade, em escolhas cinemáticas muito específicas - e até, diga-se de passagem, desprovidas de ego.

Chernov escolhe manter em tela, por exemplo, os momentos angustiantes em que anda pelas ruas sitiadas da cidade, escondendo-se em batentes e entrando em prédios abandonados sempre que um estouro de bomba ou disparo é ouvido ao longe. Ele também preserva uma, e somente uma, tomada que mostra o seu rosto, bem perto do final do filme, quando já está se afastando de Mariupol e a narração reflete sobre a sorte absurda que fez seu comboio de carros passar ileso por mais de 100 quilômetros de território ocupado pelos russos. Na narração em off, Chernov diz que vai ver suas filhas de novo em breve, enquanto milhares de tragédias permanecerão sem registro na Ucrânia. A sensação que fica é que o diretor finalmente mostra seu rosto para que ele mesmo não esqueça da vergonha que carrega (justificada ou não, é difícil se livrar dela, não é?).

Importante e chocante são adjetivos que 20 Dias em Mariupol teria atrelados a si independente da maneira que se estruturasse como filme. O valor histórico e o apelo humanístico dessas imagens são inegáveis, mas o filme deixa uma marca mais duradoura no espectador quando não limita esse registro ao distanciamento e recorte inclementes da forma jornalística. Há uma liberdade emocional, e portanto um poder expressivo, no cinema que inexiste na reportagem - ter percebido e se aproveitado disso foi a melhor coisa que Chernov e seus colaboradores poderiam ter feito.

Nota do Crítico
Ótimo
20 Dias em Mariupol
20 Days in Mariupol
20 Dias em Mariupol
20 Days in Mariupol

Ano: 2023

País: EUA/Ucrânia

Duração: 95 min

Direção: Mstyslav Chernov

Roteiro: Mstyslav Chernov

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