A Semente do Fruto Sagrado

Créditos da imagem: Mares Filmes

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Crítica

A Semente do Fruto Sagrado é denúncia ferranha contra regime iraniano

Entre o drama familiar e o suspense, filme Mohammad Rasoulof reflete um povo em busca de ar

Omelete
5 min de leitura
10.01.2025, às 16H27.

É inevitável, e até necessário, falar do contexto da estreia de A Semente do Fruto Sagrado no Festival de Cannes 2024. Pouco mais de um mês antes da realização do evento, o diretor iraniano Mohammad Rasoulof foi condenado a oito anos de prisão por fazer filmes e documentários que o regime do país julgou como inapropriados. Ele apelou a sentença, e aproveitou a demora burocrática para quebrar sua tornozeleira e fugir. Foram 28 dias se escondendo pela Europa até chegar na França e exibir o projeto, uma denúncia ferrenha do que acontece em sua casa.

A palavra “casa” é até apropriada, já que Rasoulof usa o contexto familiar para falar justamente da corrupção do sistema que o condenou. As divisões políticas e sociais do Irã, as mentiras contadas pelo governo, a violência policial e a ausência completa de justiça são achatados dentro de um pequeno, mas confortável, apartamento em Teerã. Lá moram Iman (Missagh Zareh), que na primeira cena do filme é visto recebendo uma arma carregada. Trata-se de um "presente" para acompanhar sua promoção para o cargo de juiz investigativo na capital. Um dia depois, ele explica, ao lado da esposa Najmeh (Soheila Golestani) para as filhas Rezvan (Masha Rostami) e Sana (Setareh Maleki) a necessidade de manter seu novo cargo em sigilo.

Em todo caso há um vencedor e um perdedor,” ele explica. “O perdedor pode achar que o resultado foi injusto e buscar vingança.” Mas o que Iman não sabe ainda é que o maior perigo para o bem-estar de seu lar não virá de uma força exterior. O problema já está dentro daquelas paredes, e vem borbulhahando lentamente até o ponto de explodir quando protestos tomam conta de todo o Irã. O estopim é quando a polícia de Teerã prende e mata uma mulher que estava, supostamente, usando mal seu hijab. Inspirada em diversos episódios reais e infelizes, a história foi vendida pelo governo como uma morte acidental por um infarto, mas o povo não comprou isso. Gritos se espalham pelas ruas da cidade e chegam até a escola e faculdade onde Sana e Rezvan, respectivamente, estudam.

A Semente do Fruto Sagrado
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Lentamente, Rasoulof aumenta a tensão neste lar até o mesmo se fragmentar. O acesso às redes sociais fez plantou nas meninas dúvidas quanto às práticas mais rígidas de sua sociedade, mas a disciplina de seus pais significa que é preciso ter cuidado na hora de expressar esse questionamento. Durante boa parte do filme, os embates se configuram entre as filhas e a mãe. Najmeh é, diante delas, irredutível. Ela defende o regime, critica os protestos e insiste no cuidado com o pai. Sozinha com o marido, porém, ela se mostra duvidosa. O roteiro de Rasoulof se recusa a simplificar a mulher, interpretada por Golestani como alguém com um eterno grito preso na garganta, e vê-la navegando nas águas turbulentas que visitam sua residência é doloroso e essencial.

Semelhantemente, Zareh impede que olhemos para Iman como um vilão caricato por conta de sua abordagem mais quieta. Os protestos o removem de sua casa durante muitos dias, mas quando ele enfim começa a conversar com as filhas para tentar convencê-las a abandonar seu despertar político, Iman jamais levanta a voz, e até procura controlar os acessos de raiva de sua esposa. Enquanto isso, Rostami e Maleki criam uma linguagem própria, trocando olhares silenciosos enquanto assistem, em seus celulares, a massacres injustificáveis.

Os vídeos assistidos pelas duas tomam conta de toda a tela, e são gravações reais de acontecimentos horrendos no Irã. Atropelamentos, tiroteios, execuções. Rasoulof cria um nó em nosso estômago semelhante ao que as mulheres de A Semente do Fruto Sagrado estão sentindo, mas sem dúvidas muito menor do que aquele experimentado por iranianos no mundo real, inclusive por Zareh e Golestani, que seguem em risco no seu país natal e foram homenageados pelo diretor enquanto este andou pelo tapete vermelho de Cannes.

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Eventualmente, um desses casos afeta uma amiga próxima de Rezvan. Com a família distante, ela tem só a casa da colega para usar de refúgio. Rasoulof usa esse momento para nos colocar face a face com as consequências da violência dos registros que sublinham todo o filme. É uma sequência apropriadamente assustadora. É, também, a entrada metafórica de todas as circunstâncias exteriores na casa de Iman.

Logo depois disso, ele percebe que sua arma sumiu, e entra em parafuso. Ele começa a questionar suas filhas e esposa, certo de que não a esqueceu no trabalho, mas que uma delas é responsável pelo sumiço, e chega ao ponto de levá-las para um interrogador da promotoria no que deveria ser a gota d’água para elas. Se descoberto, esse erro o colocará na prisão por anos. Mas há um perigo mais imediato: seu endereço e identidade são publicadas na internet. Eles precisam fugir.

Iman é apresentado em A Semente do Fruto Sagrado como um funcionário público honesto, que trabalhou 20 anos fazendo o correto. Como juiz investigador, porém, ele é ordenado a fechar os olhos para certos processos e apenas assinar documentos que não são nada menos do que declarações de morte para supostos criminosos. Rasoulof parece querer que acreditemos numa espécie de arco de descoberta para o homem. Especialmente dada a intensidade dos embates emocionais entre Najmeh e as filhas, em especial a mais velha, é até fácil imaginar este filme como um que a coloca no papel de antagonista.

Rasoulof, porém não pode ignorar a verdade de que as mulheres são as principais vítimas das práticas que seu filme está denunciando, e no lugar de manter a honestidade de Iman, faz o personagem entrar numa espiral de loucura e agressividade nem sempre justificada no texto, particularmente dada a velocidade dessa virada. De todo jeito, é uma mudança importante: ela leva A Semente do Fruto Sagrado para uma conclusão longe de Teerã que dispensa a lógica das personalidades envolvidas em favor do suspense, refletindo a situação emocional daquela família e daquele país numa jogada de gênero.

A execução de tal suspense não está no patamar dos debates levantados pelo filme, e depende de conveniências às vezes alarmantes. A questão é que a névoa de lamentação estabelecida pela direção de Rasoulof supera qualquer tropeço no controle do tom. Há um pranto em A Semente do Fruto Sagradd, um título que se refere a uma semente cujas raízes crescem sufocando outras árvores. Este é o filme de um cineasta, de um povo, em busca de ar.

Crítica originalmente publicada no Chippu, parte da Omelete Company, durante o Festival de Cannes 2024.

Nota do Crítico
Ótimo
A Semente do Fruto Sagrado
The Seed of the Sacred Fig
A Semente do Fruto Sagrado
The Seed of the Sacred Fig

Ano: 2024

País: Irã

Classificação: 14 anos

Duração: 2h47 min

Onde assistir:
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