Filmes

Crítica

Assassino por Acaso recupera o valor criativo da ironia

Richard Linklater faz dos códigos do noir e da comédia de erros um cavalo de Troia da desconstrução

Omelete
5 min de leitura
12.09.2024, às 14H47.

Entender a partir do trailer o que Assassino por Acaso está propondo é um desafio. Afinal, quando o professor de filosofia Gary Johnson (Glen Powell) se envolve com uma potencial femme fatale (Adria Arjona) na condição de falso matador de aluguel, isso faz do filme um noir? Uma comédia de erros? Em algum momento Gary Johnson - que ao longo do trailer estrala sorrisos charmosos com todo o star power que Glen Powell tenta construir para si - vai de fato dar um tiro em alguém?

Bastam uns cinco minutos do filme de Richard Linklater para perceber que se trata, na verdade, daqueles cavalos de Troia em que o trailer precisa simular uma comédia de ação tradicional para dissimular o que de fato lhe constitui - neste caso, uma aula de desafetação, que sequestra os códigos desses gêneros para transportar uma pequena comédia indie sobre relacionamentos. Quando Linklater reclama publicamente que são os departamentos de marketing de Hollywood que decidem quais filmes serão feitos, ele sabe do que fala, e Assassino por Acaso pode ser lido como uma provocação a esse status quo.

Isso não significa que Linklater trabalha na chave do noir de forma cínica ou apartada, deixando cair nomes de filmes antigos casualmente a título de conhecimento de causa. Seu Assassino por Acaso usa a ironia como força criativa e trabalha fielmente de acordo com os códigos que escolhe para si, acreditando neles. Sendo assim, até o último instante a personagem de Arjona, Madison (um nome perfeito de femme fatale), vai trazer no seu semblante complicado a marca do perigo. Que esse perigo seja o ingrediente da receita que atrai Madison e Gary Johnson, nesta ótima história sobre encontrar alguém que combine com seus fetiches, é o principal atestado de que Linklater entende o noir profundamente.    

Outro atestado - este, de que Linklater confia no seu taco - é o fato de Assassino por Acaso ser contado numa sucessão de elipses. Fica até difícil adivinhar quanto tempo transcorre na trama (certo personagem diz no clímax que os eventos do início do filme rolaram “já faz tempo”), porque os saltos ocorrem sistematicamente, sem marcas visuais muito nítidas (à parte o fato de Gary Johnson ficar cada dia mais confortável no papel de gato). Um crime central na história acontece numa dessas elipses, fora de cena. Em nome do pudor (mesmo que a censura seja R nos EUA), os momentos de sexo dos protagonistas, importantes para assentar o discurso do filme, também são suprimidos ou acelerados.

Esse mecanismo da elipse acaba colaborando crucialmente para que Assassino por Acaso abrace mesmo a desafetação, mesmo quando o texto ensaia intelectualizar e “explicar” tudo o que acontece na ação. O efeito é que as duas camadas que compõem o filme - de um lado, as digressões paratextuais do professor com seus alunos, do outro, a comédia policial de fato - se equiparam nas elipses e não estabelecem uma hierarquia que engessaria suas trocas. Às vezes, a ação parece ser apenas uma ilustração das aulas. Às vezes, é a ação e a natureza feita de reviravoltas da comédia screwball que servirão para pegar o professor no contrapé. 

Nesse aspecto, Linklater continua fiel aos códigos, porque parte da graça do noir calcado na narração em off do protagonista é justamente rendê-lo na ação, e provar que seu ponto de vista privilegiado em primeira pessoa não é garantia de antevisão. Seguir a perspectiva do protagonista, a quem a gente se afiança porque ele parece estar no controle da situação, é um truque para que nós embarquemos nas viradas. A de Assassino por Acaso não é uma operação cínica como aquela da narração em off de O Matador de David Fincher, mas o efeito é similar no seu potencial cômico. Em outras palavras, se Richard Linklater realiza Assassino por Acaso para despir gêneros dos seus lugares-comuns - e ele certamente mira nisso sempre que coloca Glen Powell para imitar variações do machão - isso acontece no coração desses gêneros e não fora deles. Assassino por Acaso, inclusive, trabalha os códigos do noir e da screwball comedy naquele ponto sensível onde eles se cruzam (antevisão vs. reviravolta), para potencializá-los.   

No mais, trata-se de um filme encantador na medida em que Gary Johnson não é tratado de forma muito populista na hora de desenhar seu arco de transformação. O personagem começa o filme como o típico nerd introspectivo, rapidamente descobrimos que ele foi largado pela ex-mulher, e essas são as senhas para o que poderia ter se tornado uma narrativa de revanchismo. O que Assassino por Acaso realiza a partir disso, ao contrário, tem noção do absurdo implícito na premissa (até o fim os personagens comentarão desconcertados o glow up do falso matador) e não força a jornada para além do que ela pode e pretende ser: um boy-meets-girl muito definido pelo acaso.

Se Glen Powell procurava um filme que pudesse sedimentar seu novo lugar entre os galãs com quem compete na sua faixa de beleza padrão (parece que Chris Hemsworth precisou entrar em baixa para que Powell crescesse), Assassino por Acaso - cujo roteiro ele assina em parceria com Linklater - é feito sob medida. Lidamos aqui com um filme que reforça papéis de mítica masculina, a partir dos códigos antigos que os consagraram, mas com um olhar não apenas irônico como também sensível em direção a uma sexualidade mais flexível. Ou alguém questiona que é a femme fatale quem manda no quarto?

Nota do Crítico
Excelente!
Assassino por Acaso
Hit Man
Assassino por Acaso
Hit Man

Ano: 2023

País: EUA

Classificação: 16 anos

Duração: 115 min

Direção: Richard Linklater

Roteiro: Glen Powell, Richard Linklater

Elenco: Glen Powell, Adria Arjona

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