Vamos falar do elefante na sala: em Charlie em Ação, o irlandês Pierce Brosnan exibe um dos piores sotaques do sul dos EUA na memória cinematográfica recente (e a brasileira Morena Baccarin, jogada no mesmo barco, não fica muito atrás). De fato, como as primeiras cenas do filme de Phillip Noyce não dão falas ao personagem principal, mas contam com uma narração em off à la film noir feita pelo próprio, a desconexão entre voz e pessoa é meio desconcertante para o espectador acostumado à cadência original do ator. E, ainda assim, uma vez que passa o primeiro estranhamento… não dá para dizer que Brosnan não é um triunfo em tela.
O ex-007, é verdade, nunca foi um grande ator - mas foi justamente o seu charme meio gaiato, a sua capacidade de afetar sofisticação sem alienar o público, que lhe fez o Bond perfeito para o período em que interpretou o personagem, entre o fim dos anos 1990 e o começo dos anos 2000. E é essa mesma combinação deliciosa de artificialidade e credibilidade, essa capacidade de ser um “cara comum” que obviamente não existe no mundo real, que Brosnan traz para Charlie em Ação. Com esse carisma que tem se tornado raro em Hollywood, ele segura o centro e o interesse humano de um filme que facilmente poderia desmoronar ao seu redor.
Na trama, o tal Charlie (Brosnan) é o braço direito de longa data de um mafioso da cidade costeira de Biloxi, Mississippi (EUA). O problema é que o poderoso chefão da vez, Stan (James Caan, em ótima performance que foi também uma das últimas que gravou antes de sua morte, em 2022), está em uma posição enfraquecida por conta de sua saúde frágil, e um novo líder criminoso está de olho em seu império. Após um ataque inesperado, cabe a Charlie e à durona Marcie (Baccarin), ex-mulher de um ladrãozinho que está envolvido de alguma forma nessa disputa, resolver a situação para que o protagonista possa finalmente se aposentar e viver a vida dos sonhos no interior da Itália.
A vocação da trama, inspirada em um livro de Victor Gischler, é se aproximar de uma comédia de máfia com sabor de noir ensolarado e flertes breves com a adrenalina crua que costumava povoar as prateleiras de locadora nos anos 1990 e 2000. Há algo de Elmore Leonard (icônico autor pulp estadunidense, adaptado por Hollywood em filmes como Irresistível Paixão e Jackie Brown) aqui, do humor ácido dos diálogos ao exaspero estampado nas expressões dos personagens, que encaram a brutalidade de seus arredores como “só mais um trabalho” e, por isso, se mostram meio entediados por ela - está tudo no seu lugar, embora em uma versão obviamente menos afiada. Seja pela qualidade do material original ou pelo trabalho do roteirista Richard Wenk (da franquia O Protetor), enfim, essa evocação de gênero funciona.
Os problemas surgem, mesmo, quando Charlie em Ação parte para… bom, para a ação. O diretor Noyce, que no passado se mostrou um bom manipulador de tensão e adrenalina em filmes como Terror a Bordo, Jogos Patrióticos e Salt, aqui parece comandar os procedimentos com pouco interesse, poucos recursos, ou uma combinação dos dois. Charlie em Ação não só parece um filme barato, como não se esforça para contornar essa capenguice com quaisquer floreios visuais que ajudem a sustentar sua ambientação. E, quando chega a hora dos finalmentes, Noyce e o montador Lee Haugen (Ad Astra) se resignam a um estilo de ação curto e grosso, de tensão mal fabricada e justificada, que tem definido a filmografia recente de Liam Neeson, para citar um exemplo óbvio.
Acontece que essa falta de firulas estilísticas, esse simulacro de macheza simplificada, não combina em nada com a história que o filme tem para contar - e Pierce Brosnan é um homem de muitos talentos, mas ser Liam Neeson não é um deles. Charlie em Ação, em seus melhores momentos, é um conto criminal que se beneficia de uma ternura e uma ironia raras entre as produções de seu gênero, e que prospera por ter um astro de cinema legítimo entregando tudo o que sabe no seu centro. Uma pena, de fato, que o próprio filme frequentemente pareça querer fugir dessas virtudes.
*Charlie em Ação chega ao catálogo do streaming Adrenalina Pura em 1º de janeiro.
Ano: 2023
País: EUA/Reino Unido
Duração: 90 min
Direção: Phillip Noyce
Roteiro: Richard Wenk
Elenco: Toby Huss, Pierce Brosnan, James Caan, Morena Baccarin