A julgar por Intervenção Divina (2002), o longa-metragem anterior do cineasta palestino Elia Suleiman, poderíamos esperar de O que Resta do Tempo o mesmo cinema de simbolismos, com toques de comédia à Jacques Tati e muitas referências à cultura de massa ocidental. Felizmente, o lacônico sarcasmo de Suleiman continua o mesmo. O que muda um pouco, logo de cara, é o referencial para os espctadores do lado de cá do oceano.
O filme começa com Suleiman interpretando a si mesmo, no banco de trás de um táxi, cercado por uma tempestade de raios. O motorista se perde. Vamos parar em uma realidade que, já nos créditos iniciais, o diretor apresenta como um "presente ausente". Nessa realidade, a primeira guerra entre árabes e judeus depois da criação do Estado de Israel terminou com um lado vitorioso: o dos israelenses. Assim, Nazaré e sua população muçulmana se conformam com a derrota e passam a viver em um Estado oficialmente judaico.
o que resta do tempo
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A história de Suleiman e de seus pais, então, é narrada em quatro momentos: junho de 1948, 1970, 1976 e Nazaré hoje. Conjecturas à parte, a fantasia envisionada por Suleiman já parte de uma versão poeticamente adaptada do mundo real: um árabe suicida que dá um tiro na cabeça ao invés de detonar uma bomba é o que de mais imediato o espectador pode perceber como dissonância. Soldados que apreciam música no meio da rua, um herói islâmico de olhos claros e rosto hollywoodiano, pelotões de fuzilamento que não fuzilam ninguém... A guerra encenada como farsa, uma linguagem universal, é o que dá início a O que Resta do Tempo.
A partir daí, já nos anos 1970, quando Suleiman começa a mostrar a rotina árabe sob o controle israelense, é preciso ter um razoável conhecimento dos costumes e da situação no Oriente Médio para acompanhar plenamente a desconstrução que o cineasta está propondo. Se em Intervenção Divina tínhamos simbologias fáceis (a panela de pressão, Papai Noel) embaladas no pop (cinema de ação, "I Put a Spell on You"), aqui tanto a ironia quanto a iconografia são mais sutis, como os fogos de artifício nas cores da bandeira palestina.
Outros exemplos: quando o coro de meninas muçulmanas canta na escola judia uma canção em honra ao Dia Nacional de Israel com molejo árabe, ou quando o jovem Elia traz para casa o incomível "prato de lentilhas da Tia Olga" - sendo Olga um nome tradicionalmente judaico e as lentilhas, tipicamente árabes. É preciso atenção e conhecimento prévio para aproveitar essas sacadas. A imbatível invenção visual de Suleiman, que faz até jardins com plantas típicas do deserto nazareno parecer um subúrbio plastificado dos EUA, dá conta do resto.
Ao mesmo tempo em que cria versões fantasiosas para a dura realidade em Israel (o soldado judeu impede o árabe de atravessar o ponto de controle de uma ponte porque pode ser um risco à vida do... árabe), Suleiman mantém elementos que existem na vida real mas são absurdos demais para parecer verossímeis, como o muro de concreto que segrega o Islã. Abusado, sem dúvida, o cineasta, mas é com uma comédia irreverente como esta que ele consegue tocar no mais sério dos assuntos: a angústia por preservar a cultura do seu povo em tempos de pasteurização e em ambiente hostil.
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Ano: 2009
País: França, Palestina
Classificação: 14 anos
Duração: 105 min