As acusações de abuso sexual contra Michael Jackson não são de hoje. O primeiro julgamento em que o Rei do Pop se defendeu de pedofilia aconteceu em 1993 e as polêmicas estiveram presentes durante todos os últimos anos de sua vida. Mesmo assim, o alcance do seu brilho e a grandiosidade de sua música sempre superaram as discussões e, antes de uma era de Me Too, minimizar as controvérsias era a regra. Mas a discussão retornou aos holofotes em 2019 com o documentário Deixando Neverland, que traz o relato de Wade Robson e James Safechuck, dois garotos que passaram fases de sua infância como, no mínimo, amigos íntimos de Michael Jackson.
Dirigido por Dan Reed, Deixando Neverland é, em primeiro lugar, difícil de assistir. Mas ele é necessário. O histórico de acusações de Michael Jackson e o seu comportamento, sempre rodeado de crianças, seriam o suficiente para dar a Wade e Safechuck o benefício da dúvida. E o documentário constrói uma narrativa tanto comovente quanto convincente das relações entre os garotos e Michael. Não apenas há registros concretos – como recados em secretária eletrônica e bilhetes escritos – como os depoimentos dos familiares soam extremamente genuínos. Deixando Neverland se baseia nas acusações de abuso, mas ele se desenvolve como um retrato cortante do trauma durante toda a vida e na família das vítimas.
É válido não acreditar que Michael Jackson cometeu estas atrocidades. Não há provas. Mas depois de assistir Deixando Neverland, é difícil defendê-lo. Wade e Safechuck detalham o relacionamento que mantiveram com o músico desde os sete anos e relatam uma relação íntima que o músico construiu com seus familiares. Foram temporadas de vivência no rancho Neverland, viagens, estadias em hotel. Deixando Neverland realiza a tarefa difícil de criar uma empatia com a mãe dos garotos, que permitia cada uma das ousadias de Michael, desde dormir sozinho no mesmo quarto com as crianças, até morar com eles por meses. Michael levava as duas famílias, de classe média, para viagens e passeios dos sonhos, e seu comportamento adorável e aparentemente inocente conquistou a todos: “Ele aparentava ser uma alma amorosa, doce, carinhosa. Era fácil de acreditar que ele era apenas isso", diz Joy Robson.
Mas o aspecto mais comovente do relato de Wade e Safechuck é a caracterização do abuso. Nenhum dos dois descreve Michael como perverso, ou manipulador. Eles relembram de um tempo de amor e carinho, onde eles se sentiam apaixonados por um músico que era maior que tudo. Em seus próprios depoimentos, eles não se colocam como vítimas do que aconteceu, e sim explicam a adoração de um ídolo, relembrando a convicção de uma relação íntima e normal. Foram anos depois que os dois passaram a entender, aos poucos, o que aconteceu. A primeira realização se dá como ciúmes, quando cada um dos dois percebe que seu suposto melhor amigo agora tem um outro garoto favorito.
De modo muito consistente, o documentário acaba refutando grande parte dos argumentos usados para descreditar os acusadores. A lembrança do julgamento em que ambos defenderam Michael envolve treinamentos e o convencimento de que se alguém os descobrisse, todos iriam para a cadeia. Ainda, Wade e Safechuck guardaram uma série de relíquias de Michael, como jaquetas e luvas usadas em shows e clipes, e ganharam jóias de ouro e diamante de presente. Então para quem alega que a motivação por trás dos indivíduos é dinheiro, é difícil imaginar que os dois não tenham pensado em um jeito menos sofrido de enriquecer.
Deixando Neverland não é um documentário investigativo, e isto não é um problema. Ele não busca outras supostas vítimas, não examina o comportamento de Michael, não vai atrás de provas factuais e muito menos apresenta um contraponto da defesa. Mas tem um foco claro e não desvia dos depoimentos em nenhum momento. Michael Jackson é construído apenas a partir da imagem de Wade e Safechuck e não há imagens ou vídeos do músico que não tenham saído diretamente dos relatos. Ao mesmo tempo, não é sensacionalista. Não há nenhuma apelação, até porque a força dos relatos por si só são chocantes demais. E, mais importante, os depoimentos são convincentes por não focar apenas no abuso específico, mas em como a relação, para eles, era de amor e confiança.
O resultado final e a tese de Deixando Neverland é uma desconstrução do Michael Jackson inocente, mas Dan Reed também não exagera, eventualmente entregando a tradicional relativização da culpa de Michael através dos próprios familiares, que lembram que o Rei do Pop não teve infância e era um sujeito complicado: “Talvez eu pudesse perdoá-lo em algum nível se tentar entender que ele era doente. Mas perdoar a mim mesma é outra coisa. Não sei se conseguirei fazer isso”, diz Joy, em um dos momentos mais tristes do filme. O efeito dos casos nas duas famílias, que constitui grande parte da segunda metade do documentário, é quase tão duro de assistir quanto os relatos dos abusos em si.
A questão do que fazer e sentir depois de assistir Deixando Neverland é difícil. Talvez seja o caso de simplesmente aceitar a dúvida. Mas a ideia de Reed nunca foi negar o talento de Michael ou criar um movimento de silenciamento de suas músicas. À Vice, ele disse: “Você quer ouvir as músicas de MJ na festa do seu filho? Eu não sei. Eu não gostaria. Mas ele deveria ser banido? Eu acho que não. São ótimas músicas. Ele era um grande artista e performer. Ele também era um pedófilo”. Mas talvez não importe realmente o que você acredita agora, ou o que você quer acreditar. O que Dan Reed construiu em Deixando Neverland é uma narrativa comovente e convincente, que merece pelo menos ser ouvida.