Na primeira vez que vemos a versão envelhecida de Harrison Ford entrando em ação em Indiana Jones e a Relíquia do Destino, ele rouba o cavalo de um policial e sai em disparada através de uma rua tomada por cidadãos americanos jubilantes, que acompanham uma parada comemorando o pouso do primeiro homem na Lua. Fugindo de seus perseguidores, o arqueólogo causa caos atravessando (de forma bem truculenta) um cenário pelo qual, como o roteiro já deu a entender pelo menos meia dúzia de vezes até este ponto, ele não tem nenhum apreço.
É talvez o único momento do filme em que o diretor James Mangold cede a impulsos iconográficos. Pudera: como resistir à imagem de Indiana Jones, um dos grandes heróis cinematográficos do imaginário americano, empinando um cavalo enquanto destrói o cenário de um dos momentos mitológicos da história do país? Na superfície está o choque de velho e novo que faz parte do texto básico de A Relíquia do Destino, essencialmente a história de um homem buscando razão para continuar vivendo em um tempo e um lugar que não se importam com ele e com as “coisas velhas” que ele ama, pois estão muito mais interessados em olhar para o futuro.
Nas entrelinhas, no entanto, há também a quebra de um ideal de heroísmo mais profundamente arraigado na franquia e no país que a produziu. Não é à toa que o roteiro (assinado por Mangold, David Koepp e os irmãos John-Henry e Jez Butterworth) escolhe ambientar a trama justamente em 1969, no final da década que marcou uma transformação tectônica do sonho americano - vide a morte de John F. Kennedy, os protestos contra a Guerra do Vietnã, a ascensão do movimento hippie, o reino de terror de Charles Manson, as tensões culturais provocadas pela Guerra Fria, e por aí vai.
Em algum momento da década de 1960, os EUA deixaram de ser os salvadores ocidentais que derrotaram o nazismo, e se tornaram um país em plena crise de identidade… uma crise que, é razoável argumentar, continua até hoje. A Relíquia do Destino demonstra eloquência ao farejar essa crise e se aproveitar dela para reavaliar o papel de seu herói dentro da mitologia americana, e o que fazer parte dessa mitologia fez com ele em uma dimensão humana. É uma excelente ideia: o Indy cifrado, figura central de uma jornada de herói inconteste, tem tanto espaço para existir no cenário cultural de 2023 quanto o personagem tem espaço para existir, em seu contexto ficcional, nos EUA de 1969.
Nesse mesmo pique, o filme acerta ao explorar a tradição de vilões nazistas da franquia para nos introduzir ao Dr. Jürgen Voller (Mads Mikkelsen), cientista do Terceiro Reich que, depois da guerra, foi recrutado pelo governo americano e se tornou crucial para o sucesso do país na corrida espacial. É claro que, durante o filme, descobrimos que o Dr. Voller ainda se apega a ideais nazistas… e, no golpe de mestre do roteiro, que ele conseguiu recrutar vários agentes governamentais americanos para sua causa. O personagem Klaber (Boyd Holbrook) é especialmente emblemático do estadunidense branco que abraça a ideologia nazista movido por um saudosismo repressivo e por um delírio de pureza racial equivocado.
É uma caracterização alarmantemente moderna, ainda mais para uma franquia que até então havia se mostrado tão firmemente enraizada no resgate de tradições narrativas anteriores a ela. Em Indiana Jones e a Relíquia do Destino, a nostalgia vazia que guiou tantas outras retomadas de franquias clássicas se converte em um chamado à modernidade. O trunfo do filme é seu impulso genuíno de contar uma história que valha a pena, de dar a este personagem um final que faça sentido para ele, que o localize dentro da tradição que ele ajudou a construir, mas também que o faça suplantá-la, provando-se digno do afeto do público pelas qualidades humanas de sua jornada.
E a resposta para a questão que move Indy nesta sua última aventura, a razão para sua perseverança diante da marcha incansável do tempo, é uma só: o amor, claro. A Relíquia do Destino pode ser o primeiro filme da franquia sem Steven Spielberg na direção, mas herda toda a ternura do mestre, muito embora - lamentavelmente - não herde a inventividade visual e o ritmo impecável dos melhores blockbusters dele. Mangold, tão incisivo ao delinear a sua história, é menos dedicado a distinguir o seu filme esteticamente, optando por cortes rápidos e iluminação chapada no lugar do verniz dourado e cinético que envolve todos os filmes de Spielberg na franquia.
Por sorte, Harrison Ford dobra a aposta narrativa do filme com aquela que é provavelmente a sua performance mais vulnerável até hoje. Pois é, vulnerável - palavra raramente associada a Ford ou aos heróis que ele interpreta… talvez injustamente. Por todo o charme grosseiro do seu Han Solo ou a carranca soturna de seu Rick Deckard, por toda a fama de rabugento que ele adquiriu em entrevistas e nas comédias mais recentes de sua filmografia, talvez o legado mais significativo de Ford seja a vulnerabilidade de seus heróis - mesmo os mais machões, emocionalmente retraídos por natureza.
Em A Relíquia do Destino, o seu Indy pulsa com necessidade da conexão humana, com ânsia por compreensão, com arrependimento e com o tipo de amor machucado que só quem já perdeu alguém muito próximo a si pode entender. Ele é capaz e corajoso, claro, mas o seu valor real está nos relacionamentos que cultiva, nos momentos em que se permite ser visto e cuidado, tanto quanto a sua derrocada está nos momentos em que não se dispõe a ver nem cuidar. O final feliz de Indy acontece quando um dos lados dessa dualidade triunfa sobre o outro.
Da parte de Ford, é uma atuação de coragem extraordinária, que trabalha de fora para dentro, a vulnerabilidade física se tornando vulnerabilidade sentimental em momentos que pegam o espectador de surpresa, mas talvez não devessem. 40 e poucos anos depois de sua estreia nos cinemas, Indiana Jones está velho, cansado e ultrapassado, sim, mas derrotado? Jamais. Ou, ao menos, não enquanto se permitir amar e ser amado - aventura arriscada, eu sei, mas pelo menos a chance de encontrar uma piscina cheia de cobras é bem menor.
Ano: 2023
País: EUA
Duração: 154 min
Direção: James Mangold
Roteiro: David Koepp, James Mangold, John-Henry Butterworth, Jez Butterworth
Elenco: Thomas Kretschmann, Toby Jones, Shaunette Renée Wilson, Antonio Banderas, John Rhys-Davies, Mads Mikkelsen, Harrison Ford, Boyd Holbrook, Phoebe Waller-Bridge