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Filmes que elegem heróis solitários em meio à selvageria da Segunda Guerra já foram feitos aos montes. São homens que tentam atravessar a tragédia sem perder a vida, a identidade, a dignidade - sejam eles meros sobreviventes como o Wladyslaw Szpilman de O Pianista (The Pianist, de Roman Polanski, 2002) ou gente graúda acometida de lucidez como o Oskar arrependido de A Lista de Schindler (Schindlers list, de Steven Spielberg, 1993).
Mas poucas histórias de resistência ao Holocausto carregam uma simbologia tão poderosa e dramática quanto a de Passaporte para a vida (Laissez-passer, 2002), filme do veterano Bertrand Tavernier baseado no livro autobiográfico do cineasta francês Jean-Devaivre.
Durante a invasão nazista na França, início de 1942, o então assistente-de-direção Devaivre (Jacques Gamblin) acompanha o desmoronamento da economia parisiense. Ex-militar, ele mantém uma sólida participação na resistência; negócios que envolvem armas, panfletos e contatos clandestinos. Mas Devaivre precisa alimentar a mulher e o filho recém-nascido - e a única produtora capaz de pagar bons salários e bancar filmes decentes é a Continental, multinacional alemã.
Devaivre acaba aceitando o trabalho, mais para obter o passe-livre dos bloqueios nazistas (o laissez-passer do título original) do que por gana profissional. No estúdio, os funcionários não podem usar o mesmo elevador dos alemães. Mas esse é o menor dos abusos. Censura e ameaças pessoais são constantes. Impera a desgraça, mas o filme acha lugar para a ironia francesa: depois de ser encarcerado e interrogado por dois meses, um dos roteiristas só consegue escrever cenas repletas de comida; por sua vez, a produção não encontra alimentos suficientes na cidade em guerra para filmar essas cenas.
A tensão aumenta, e eis que chega o ponto crucial desse embate moral: Devaivre ganha prestígio, ocupa o lugar de diretor, comanda romances, musicais e comédias de sucesso, mas sofre ao depender da fantasia enquanto o mundo à sua volta se arruína. Repare: não é o mesmo drama do Szpilman que se agarra à música como a uma tábua na enchente. Abraçar o cinema - arte ilusória por excelência - significa para Devaivre ser obrigado a ludibriar os espectadores da sua própria pátria. Essa é a simbologia citada lá em cima, o famoso dilema do "lute ou renda-se" em sua essência mais cruel.
Em suas três horas de duração, evidentemente, Passaporte para a vida não apresenta esse cenário de modo tão abreviado. Não só o filme tem idas e vindas, altos e baixos, como o purgatório tem outros hóspedes: o diretor incapaz de ajudar a própria mulher, o roteirista mulherengo angustiado por ver a contaminação da burguesia francesa, os intelectuais ensaiando uma revolta armada... Então, vale avisar: Tavernier tece uma rede complexa que exige atenção. Filme difícil, apela mais à dialética do que a Hollywood judia, tradicionalmente mais próxima do coração.