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Você gosta de Reveillón? Abraços em desconhecidos te apetecem? Veste roupa branca, pula ondas, guarda lentilha, acende velas ou come romã?
Se além de responder "não" a todas as perguntas anteriores, você ainda ABOMINA qualquer tipo de confraternizações de fim de ano, então precisa dar uma olhada no francês Sanguinaires - A ilha do fim do milênio (Les Sanguinaires, 1998), de Laurent Cantet, diretor do ótimo A Agenda (LEmploi du temps, 2001).
O filme faz parte de um grande projeto, denominado "2000 visto por..." idealizado em meados dos anos 90 pelas produtoras francesas Haut et Court e La Sept Art. Seis diretores do mundo foram convidados a opinar sobre a celebrada (e antecipada) "virada do milênio" que marcou o mundo em dezembro de 1999. De todas as produções, a melhor é Vida sobre a Terra (Life on Earth, de Abderrahmane Sissako, Mauritânia, 1998), simples, esperançoso e humanista. Em contrapartida, a visão de Cantet opta por questionar a histeria e os fogos de artifício em torno do evento.
Um grupo de pais e filhos capitaneado pelo idealista François (Frédéric Pierrot, ótimo) decide, às vésperas do Réveillon, escapar da febre de 2000 - e se refugia numa ilhota próxima a Ajaccio, na Córsega, exatamente denominada ilha Sanguinaires. Ali, em pleno inverno europeu, os únicos seres sociáveis são Stephane (Jalil Lespert), o vigia que mora na ilha e o seu burrico. Como o líder de uma seita religiosa, François coloca em prática o seu plano: estão proibidos televisão, rádios, relógios e qualquer referência ao Ano-Novo.
Acontece que a intolerância do líder, a personificação do "chato francês", incomoda a todos, inclusive à sua própria mulher, Catherine (Catherine Baugué). Os mais velhos se chateiam com a intransigência, os adolescentes se rebelam em nome da festança e os pequenos apenas curtem a natureza da ilha.
Um aspecto bem interessante, difícil de ser notado, pontua Sanguinaires: a maneira como Stephane demole as aspirações de François, simbolizada violentamente no corte de madeiras e abate de animais marinhos. Mas o que sobressai no filme, infelizmente, é um defeito. O diretor assume, em entrevistas, que se identifica com o protagonista, odeia festas, danças e multidões. Pois essa indiferença, esse ar quase blasé, penaliza o filme, que resulta distante e sem alma.
Na realidade, as alegorias que Cantet propõe são mesmo discretas. Mas um assunto tão potente mereceria ser trabalhado com mais apego, mais vigor.
O número excessivo de personagens minimiza o impacto que a ilha lhes causa: apenas François recebe tratamento devido, enquanto os demais não são mais do que pitorescos. O exemplo mais efetivo dessa condução desviada, dessa esquiva, é a do vigia que acolhe os visitantes. Desde o início da jornada, o jovem sabe-tudo rivaliza com François. Os dias passam e a tensão aumenta. Mas, na hora da virada de milênio, Stephane simplesmente deixa a ilha, aborrecido, e vai festejar na cidade. Não há conflito de personalidades, nem aprofundamento, que resista a uma solução como essa.
Se há algo que faz Sanguinaires valer a pena, mesmo, é o seu final. Uma metáfora bem colocada deixa no ar algumas interpretações. Pode ser um ritual de sacrifício que substitui o Réveillon, assim como a reverência de François ao farol da ilha. Ou pode ser apenas a ridicularização do protagonista (este um ponto-de-vista polêmico, mas bem intrigante). Enfim, depois de um filme morno, a reviravolta derradeira serve de estopim - boas discussões em cafés culturais podem surgir a partir do final da sessão.