Embora tenha algumas obsessões particulares em sua carreira, como os temas do melodrama clássico, Todd Haynes é um autor difícil de catalogar a partir de sua obra. O próprio diretor diz em entrevistas que varia de narrativa de filme para filme, mas uma constante nos seus trabalhos, segundo ele, é que há um componente emocional que acaba aflorando mesmo nos experimentos intelectuais mais austeros.
Isso é absolutamente válido para O Preço da Verdade - Dark Waters, drama de investigação e tribunal que acompanha o trabalho de 20 anos de um advogado para levar aos tribunais os crimes ambientais da DuPont envolvendo a criação do Teflon. Na realidade, parece que todo o filme foi concebido a partir desse desafio envolvendo emoção e austeridade: como se engajar emocionalmente numa história que, em resumo, é uma luta solitária e frequentemente invisível pelos caminhos da burocracia e da lei?
Esse desafio é, em última instância, a própria luta do advogado, e o filme a assume pra si. Mark Ruffalo faz Rob Bilott, que começa o filme sendo promovido a sócio de uma firma de advocacia conhecida por defender gigantes do setor químico. Ao representar um fazendeiro cujo terreno foi contaminado pelo lixo tóxico da DuPont - seu processo de empatia por um raro cliente que não é uma entidade sem face - Bilott rapidamente se transforma no clássico denunciante do cinema, o whistleblower quixotesco que compra a briga contra os moinhos do sistema.
Há ecos de O Informante e Todos os Homens do Presidente em O Preço da Verdade, principalmente na forma como Haynes situa espacialmente a epopeia de Billott. A exemplo desses dois outros filmes, os ambientes por onde o protagonista passa ajudam não apenas a definir sua história emocionalmente mas também a dar o senso de escala dos desafios que ele tem diante de si, e que se renovam a cada virada de roteiro. Haynes faz dessa busca pelos espaços um capricho pessoal; O Preço da Verdade foi rodado na mesma Cincinatti e nos arredores onde a trama baseada em fatos se situa.
Há uma cena que referencia Todos os Homens do Presidente quase literalmente, quando Billott está deixando o prédio da DuPont e atravessa a garagem vazia com receio de ser morto. Esse thriller vertiginoso e potencialmente explosivo só existe na cabeça dos personagens, porém, porque para nós Haynes continua mantendo a cadência e a distância desafetada - e austera - com que pacientemente nos apresenta essa história ao longo dos 20 anos do processo judicial. Isso faz de O Preço da Verdade um quase melodrama (no sentido de que o mundo de acordo com o protagonista é tragicamente distinto da realidade imposta a ele) com características de suspense kafkiano, onde nada acontece e tudo acontece (como a falta de promoção da advogada mulher, entre outras coisas que transcorrem no segundo ou no terceiro plano).
Esse acúmulo de tensões e viradas que não têm entrega ou vazões se reflete acima de tudo no corpo do Ruffalo, que parece entrar em entropia - uma hora sua cabeça desaparecerá definitivamente, engolida pelo pescoço e absorvida pelo tronco.
Aos poucos O Preço da Verdade, entre tantas dicotomias (o corporativo e o individual, o orgânico e o industrial, o calor e a frieza, a vitória e a derrota), se revela uma história muito especial de contraposição do que é humano, vivo, e do que é morto. O uso das cores carrega isso, há um resquício de vida e morte presente na própria imagem, granulada para emular as texturas do 35mm (Haynes acabou rodando em digital a contragosto, e o diretor de fotografia Ed Lachman compensa isso usando, por exemplo, lentes antigas para dar à imagem essas camadas residuais que eles buscam).
Essas escolhas isolam Ruffalo em uma série de ambientes claustrofóbicos e desoladores, todos eles carregados pela famosa tensão que se corta no ar. (Essa expressão de cortar o ar não poderia ser mais apropriada, já que estamos falando de resíduos químicos que literalmente contaminam os ambientes.)
O próprio Haynes cita Todos os Homens do Presidente como um exemplo do isolamento que ele busca em O Preço da Verdade, e esse isolamento (presente na atenção que a câmera dá para salas e corredores e ruas, presente na distância que o protagonista toma da câmera, toma dos outros personagens) se configura num dos muitos obstáculos colocados para que a gente, como espectadores empáticos, se veja obrigado a reagir emocionalmente para acessar esses personagens e seus dramas. Quando isso acontece em O Preço da Verdade, o efeito é devastador.
Ano: 2019
País: Estados Unidos
Direção: Todd Haynes
Elenco: Anne Hathaway, Bill Pullman, Mark Ruffalo