“Só com as mãos ou com espada?”, pergunta Raya para a nova amiga. “Lâminas o dia todo!”, responde Namaari com confiança e, então, continua a brincadeira: “elegante ou casual?”. “Somente um monstro escolheria usar essa roupa todos os dias”, ri a jovem. Há muito tempo, a percepção de que princesas são frágeis, indefesas e, por que não, fúteis ficou datada. Antes mesmo de Elsa e Anna subverterem o que se convencionou nos contos de fadas, Mulan, Ariel e Jasmine inspiraram uma geração de espectadoras a serem curiosas, aventureiras e se arriscarem. Essa maré de mudanças - lentas e graduais, sim - culminou nesta cena simples, mas repleta de simbolismos de Raya e o Último Dragão. Quando se admite que ninguém precisa escolher entre ser uma guerreira e gostar de moda, meninos e meninas se sentem à vontade para serem o que bem entenderem. E se tem algo que a nova produção da Walt Disney Animation ensina é que as diferenças nos tornam mais fortes, uma mensagem que Kumandra e nosso adorável planeta precisam mais do que nunca.
Ambientada em uma terra mágica, onde um dia humanos e dragões conviveram pacificamente, Raya e o Último Dragão apresenta uma jovem determinada que adora uma boa aventura. Herdeira do Coração, uma das regiões de Kumandra - todas com nomes referentes a partes do corpo destas criaturas mitológicas, como Presa e Coluna -, Raya se vê encarregada de salvar o mundo depois do retorno de uma ameaça sorrateira, que antes fora derrotada por Sisu, a última dos dragões, mas se fortaleceu ao longo de séculos de desavenças e disputas entre os povos. Tendo ao seu lado apenas um pouco do que restou de magia, a guerreira sai em uma jornada pelos cinco reinos. Embora seja uma heroína empática, seu objetivo não é necessariamente tentar impedir que todas as pessoas se transformem em pedra. É, na realidade, salvar seu pai desse triste destino.
Logo de cara, esse “individualismo” é um fator determinante para diferenciar a trama deste lançamento de um dos últimos sucessos da Disney, Moana. Ainda que Raya parta em uma aventura também a bordo de um barco e encontre uma figura que até então acreditava ser apenas uma lenda, sua motivação não é um otimismo inveterado ou uma expectativa inocente de que há respostas para além do coral. Raya sente arrependimento e raiva por causa de um erro que cometeu na adolescência. Sua aventura vem carregada de um senso de responsabilidade sem tamanho e muita, mas muita desconfiança. Em outras palavras, ela não precisa provar para ninguém que é capaz, ou simplesmente enfrentar as preconcepções que imperam na sua comunidade. Sua adversária é ela mesma. A lição que aprende a cada novo pedaço de Kumandra que conhece é, em última instância, abrir- se para as pessoas, mesmo que exista um risco de sair decepcionada.
Em um momento em que a pandemia se agrava a cada dia e a frustração com a humanidade parece inevitável, assistir à jornada desta heroína é um respiro de esperança. Assim como seus espectadores, Raya é humana e, portanto, suscetível a erros. Mas, conforme ela recebe e dá afeto para as pessoas, seja um bebê golpista ou um senhor turrão de grande coração, ela fica mais próxima de vencer o medo que se esgueira por todo o planeta. Em Kumandra, essa ameaça tem a forma de uma sombra roxa, rápida e paralisante. Na nossa realidade, é difícil nomear apenas uma - coronavírus, violência, desemprego, ignorância e a lista continua -, mas seu efeito é igualmente assustador.
A ideia de que o medo paralisa não é exatamente original, é verdade. Há três anos, Tito e os Pássaros usou essa metáfora muito bem para debater a cultura do medo no Brasil. De qualquer forma, essa é uma ideia popular desde o Mito da Medusa. A inventividade de Raya e o Último Dragão, porém, está nos elementos que envolvem esses conceitos, desde a escolha de contar uma história centrada nas tradições do Sudeste Asiático até apresentar uma aventura com perigos reais e, portanto, menos infantil do que a Walt Disney Animation apresentou na última década.
Com cenas de ação épicas e muito bem coreografadas, é fácil esquecer que se está diante de uma animação, mesmo que um dragão com jeitinho de sereia esteja no centro de tudo. A razão para isso, além do notável talento da equipe por trás do filme, é o nível de comprometimento para criar uma representação tão mágica quanto fiel da cultura de países como Vietnã, Laos e Filipinas, transparente já na escalação de Kelly Marie Tran para dublar a protagonista. Isso fica ainda mais evidente no realismo e no toque místico que povoa todas as paisagens. Em agosto de 2019, quando foi anunciada na D23, Raya e o Último Dragão já impressionava pelo seu visual. Pouco mais de um ano e meio depois e enfrentando uma pandemia pelo caminho, o encantamento com a minúcia na caracterização de personagens e cenários permanece.
O único elemento destoante é Sisu, a dragão brilhantemente dublada por Awkwafina. Enquanto o trabalho da atriz é cheio de humor e personalidade, o design da personagem em si lembra descaradamente Elsa - as cores, o pelo e até o delineado dos olhos -, assim como o visual de um My Little Pony. Além de ousar mais, o estúdio perdeu aqui uma oportunidade de fazer humor com a quebra de expectativas da representação clássica de um dragão e da inocência de Sisu, que de fato beira o infantil. No entanto, esse é um mísero deslize diante de uma narrativa envolvente e cheia de coração.
Entre os ineditismos de ter na Disney a primeira atriz descendente do Sudeste Asiático como protagonista e o home office como uma realidade na reta final da produção, Raya e o Último Dragão salta aos olhos pela representação do que uma princesa pode ser. Por isso, além do desejo de reassistir ao filme imediatamente após terminá-lo, é difícil não sentir vontade de vê-lo com os olhos de uma criança. Se uma adulta acaba a exibição querendo ser tão destemida como a Raya, o que essa aventura pode representar para uma geração de pequenos espectadores?
Ano: 2021
País: EUA
Duração: 1h 54min min
Direção: John Ripa, Paul Briggs, Don Hall, Carlos López Estrada
Roteiro: Qui Nguyen, Adele Lim
Elenco: Kelly Marie Tran, Sandra Oh, Benedict Wong, Awkwafina, Gemma Chan, Daniel Dae Kim