Nos clássicos filmes de monstro da Universal, sempre havia algo de queer na criatura da vez. Seja em códigos visuais (o cabelo engomadinho e languidez bissexual de Drácula) ou narrativos (o status de outsider mal-compreendido de Frankenstein), esses ícones do horror se aproximaram dos públicos marginalizados e, uma vez que reclamados por um movimento LGBTQIA+ ávido por ressignificar ofensas passadas, passaram a representar a “monstrualização” do outro por parte dos defensores do sistema, daqueles interessados em manter as coisas como estão. Quase um século depois, A Garota da Agulha, filme dinamarquês que concorre à Palma de Ouro do Festival de Cannes 2024, chega para se apropriar do léxico visual desses filmes e retorcer um pouquinho essa lógica.
As referências clássicas estão evidentes: o preto e branco em alto contraste da fotografia de Michal Dymek (EO) é o básico, mas ele e o diretor Magnus von Horn (Sweat) também reimaginam enquadramentos e movimentos cênicos dos filmes de monstro em vários pontos do longa. Uma porta que se abre rangendo, revelando o rosto branco de uma senhora idosa, a expressão entre raivosa e assustada; a sombra que se estica nas escadas, remanescente do take emblemático do Nosferatu de F.W. Murnau (o expressionismo alemão ecoou forte nesse segmento do horror estadunidense, afinal); o homem mascarado escondido no escuro absoluto do cantinho do quarto de dormir; o aspect ratio acadêmico que revela apenas a pontinha de uma ossada, de uma mancha de sangue ou de alguma outra visão horripilante demais para os olhos humanos.
Enquanto a trilha sonora pesarosa de Frederikke Hoffmeier ecoa ao fundo, alongada em notas sombrias e graves ou fragmentada em pianos agudos em staccato, A Garota da Agulha vai desenhando o que claramente se pretende como mais uma história de monstruosidade criada pela rejeição, pela exclusão preternatural do status quo. Karoline (Vic Carmen Sonne) é a garota com a agulha do título, uma costureira na Copenhague do início do século XX, que se vê em situação cada vez mais miserável após o desaparecimento do marido em combate na Primeira Guerra Mundial. Do envolvimento com o chefe a uma gravidez indesejada, passando pelo retorno de um fantasma do passado, a trama a coloca para flutuar de uma esperança a outra, e de uma decepção a outra, por pouco menos de duas horas de projeção.
Poderia ser só uma estrada de agruras angustiante, talvez um pouco condescendente, a essa altura quase um subgênero próprio do circuito de festivais europeus. Mas, justamente pela aproximação do filme de monstro, von Horn e seus colaboradores treinam o espectador para buscar algo a mais, ajustam a frequência na qual o longa opera a partir de todo o histórico que o gênero carrega. Então A Garota da Agulha se torna, inesperadamente, a história de uma mulher esmagada por um mundo onde não é bem-vinda, de sua busca desvairada por uma chance de viver com conforto, em um lugar que tenha espaço para ela, e relutante em aceitar que este lugar é na comunidade dos seus semelhantes. Um filme de monstro sobre o monstro - aquele do Frankenstein, e não o do Drácula - aceitando que é monstro.
E que sorte que o filme teve ao encontrar uma atriz como Trine Dyrholm para expressar esse desajuste, essa busca, essa quebra violenta que, às vezes, é só o que resta para o monstrualizado da sociedade. A estrela dinamarquesa, conhecida pela atuação fria e complicada em Rainha de Copas, brinca de novo com o contraponto entre severidade e sedução ao encarnar Dagmar, que se oferece para ajudar Karoline com sua gravidez e depois acaba contratando a protagonista para dar assistência a outras mulheres. Da postura rígida que se quebra quando o filme toma uma curva para o grotesco ao discurso apaixonado e raivoso no último ato, ela rouba o filme para si no melhor estilo dos monstros da Universal, que nunca eram de fato os protagonistas de seus filmes, mas pareciam ser mesmo assim.
A Garota da Agulha, enfim, é o melhor tipo de emulação de um cinema passado - uma emulação precisa, que não se basta na superfície e não se presta a referências fáceis; e uma emulação com propósito, que adiciona algo de novo, subversivo e vitalmente contemporâneo a um texto enraizado no inconsciente coletivo.
Crítica escrita originalmente em 19 de maio de 2024 no Festival de Cannes, na França. A Garota da Agulha foi lançado no Brasil em janeiro de 2025 pelo streaming da MUBI.
The Girl with the Needle
Pigen med nålen
País: Dinamarca/Polônia/Suécia
Duração: 115 min
Direção: Magnus von Horn
Roteiro: Line Langebek Knudsen, Magnus von Horn
Elenco: Trine Dyrholm , Vic Carmen Sonne
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