O cinema de Hong Kong, seja nas proezas de ação dos filmes de Jackie Chan ou nos romances urbanos de Wong Kar Wai, sempre teve algo de barroco. Banhados nas luzes fluorescentes e acorrentados às desordens metropolitanas de uma das cidades mais vividamente diversas do planeta, esses filmes se aproximam dos gêneros que escolhem com uma franqueza exploratória inflexível, potencializando os elementos granulares que querem emprestar deles para contar histórias que frequentemente usam a fantasia (ou, ao menos, o exagero) para refletir sobre questões intrínsecas à vida em Hong Kong - imigração, miscigenação, desigualdade, negligência institucional, isolação e melancolia na grande cidade. Por Hong Kong ser tão sem pátria, tão do mundo, esses temas acabam encontrando ressonância universal.
É exatamente o que acontece com Twilight of the Warriors: Walled In, que representou o cinema da região no Festival de Cannes 2024. Um épico de artes marciais coestrelado por nomes emblemáticos das últimas décadas do subgênero (Louis Koo, Sammo Hung, Raymond Lam), o longa de Soi Cheang faz jornada dupla como história de imigrantes encontrando acolhimento e solidariedade em uma Hong Kong cosmopolita que se vê ameaçada por interesses institucionais quase gentrificadores, e jornada tripla como metatexto sobre conflito de gerações travado através das narrativas que os personagens carregam do passado e criam, inadvertidamente ou não, no presente.
Por pouco mais de 2h de filme, Cheang e seu time de quatro roteiristas (todos trabalhando a partir dos quadrinhos de Yi Yu) buscam equilibrar todos esses pratos no ar, apostando que o público vai comprar o bastante a jornada (por vezes, melo)dramática dos personagens, caracterizados em cores fortes e alicerçados em performances carismáticas, para aguardar pelos espaçados rompantes de pancadaria. Quando eles chegam, Twilight of the Warriors explode em energia teatral, convertendo a claustrofobia urbana de sua ambientação principal (um grande bairro amuralhado e abarrotado no meio de Hong Kong, onde chefões do crime reinam e refugiados de todos os tipos são bem-vindos) em virtude cinética. É como assistir a uma grande ópera montada audaciosamente em um palquinho minúsculo, para uma audiência limitada - uma experiência curiosa, mas também absurdamente excitante.
Essa teatralidade transborda também para a trama de intrigas mafiosas que dá combustível para o filme, especialmente na sua segunda hora. Koo, Hung e Richie Jen interpretam chefões rivais que dividem um passado complicado, enquanto Lam, Terrence Lau e German Cheung encarnam os três jovens que entram em cena para reacender velhas brigas e transformar o submundo para sempre. É a clássica história do pecado dos pais assombrando os filhos, da velha maneira se chocando com a nova, dos tratos e cumplicidades antigos, ilícitos e forjados em uma era de desespero, sendo descobertos pelo sangue fresco que chega para impor uma nova moralidade, um novo paradigma.
Escalar veteranos do cinema de Hong Kong para desfilar elegância (e, diga-se de passagem, atleticismo) diante de uma trinca de novos astros de diferentes estilos, mas todos bem mais ligados em uma comunicação direta com a câmera e com o público, é uma jogada de gênio. Assim como é genial o design de produção assinado por Kwok-Keung Mak (O Grande Mestre), que reedita a cidade amuralhada de Kowloon (sim, ela existiu de verdade) em riqueza de detalhes, tanto na reconstrução de época oitentista quanto na funcionalidade cenográfica dos becos, sacadas e paredes desmoronadas pelas quais os personagens transitam.
É a ficção ecoando na realidade, que ecoa na história do lugar retratado, que ecoa na arte realizada lá, que ecoa na cultura pop do mundo todo. A mistura de melodrama e porrada, de ópera e cinema-B, prova ser exatamente como a mistura de nacionalidades, gerações e pontos de vista que compõem a própria Hong Kong: contra todas as probabilidades, ela funciona muito bem.
Ano: 2024
País: Hong Kong
Duração: 126 min
Direção: Soi Cheang
Roteiro: Kin-Yee Au, Kwan-Sin Shum, Li Jun, Tai-Lee Chan
Elenco: Sammo Hung, Louis Koo, Raymond Lam