Quando chegou à competição do Festival de Cannes neste ano com Um Toque de Pecado (Tian Zhu Ding), o cineasta Jia Zhang-ke, conhecido pelos documentários que registram as mudanças na China de hoje, como Em Busca da Vida e O Mundo, prometia uma volta ao cinema de gênero do seu início de carreira nos anos 90. Dá pra sentir a guinada, mas o fato é que o filme não deixa de conter os elementos que tornaram Jia um dos principais historiógrafos deste século.
um toque de pecado
um toque de pecado
um toque de pecado
Quatro tramas de sangue se cruzam em Um Toque de Pecado: um operário decide se vingar daqueles que enriqueceram ilicitamente com a indústria do vilarejo; um matador de aluguel volta para casa a tempo de ver os fogos do Ano Novo com seu filho; a amante de um homem casado atravessa cidades e se vê julgada por seus atos; e um adolescente arruma um emprego num hotel-cabaré de luxo. Todos eles fogem de algo ou evitam confrontos - até o momento em que o confronto se torna inevitável.
A comparação imediata que se faz na mídia com os filmes-corais de denúncia social de Alejandro González Iñárritu pode passar a impressão de que Um Toque de Pecado está pronto a fazer julgamentos sobre o estado das coisas na China, mas na verdade, como sempre, aqui Jia se dispõe mais a capturar um espírito de mudança do que a trazer para o filme eventuais opiniões prontas sobre a realidade. É no olhar sobre o entorno que começamos a descobrir o que tanto aflige os protagonistas de Um Toque de Pecado.
E o que revela esse olhar? Uma China onde as ruínas cinzas de velhas coisas tão facilmente derrubadas (o caminhão de tomates tombado na estrada talvez esteja lá há horas, ou há segundos; é uma violência meio surreal porque o seu instante exato nos escapa) são substituídas não por concretudes, mas por coisas que já nascem sob o signo do provisório, como papéis-de-parede. A câmera registra o que há de irreal nessa nova paisagem, das colunas da estação que parecem de borracha quando refletidas no trem às dançarinas vestidas de militar, fantasmas no espelho.
O que o homem perde nessa realidade provisória, onde nada se pertence e tudo se rearranja em torno de sensos de oportunidade? Essa é a pergunta que Um Toque de Pecado se faz à medida em que recorre a estouros de violência para ter alguma dimensão, no tempo, daquilo que se comete na China em nome da mudança, do futuro. Por exemplo: se o operário alveja seu rival como num faroeste, calculadamente disposto diante da entrada de um velho templo com cara de abandonado, temos aí duas histórias de violência que se sobrepõem, e Jia, como um fotógrafo de guerra, documenta o instante do tiro para comprovar que aquele mundo ainda tem algum resquício de real.
Resquícios, de qualquer forma, e a capacidade de encontrá-los apesar da velocidade das mudanças, sempre foram a especialidade de Jia Zhang-ke. Talvez ele sinta que aproximar-se do cinema de gênero seja uma contingência em Um Toque de Pecado porque o documentário já não dá conta de uma China cada vez mais fantasmagórica, um não-lugar onde mesmo os animais transitam como assombrações.
Como diz o matador no filme, ele reza para venerar fantasmas, e não os deuses; segundo ele, os deuses servem para ser culpados. A violência do castigo, relacionado com culpa e pecado do começo ao fim do filme, desde que uma imagem cristã "substitui" a estátua de Mao Tsé-Tung no vilarejo, talvez seja a única certeza nessa China de pesadelo.
Um Toque de Pecado | Cinemas e horários
Ano: 2013
País: Japão
Classificação: 14 anos
Duração: 133 min
Direção: Jia Zhangke
Roteiro: Jia Zhangke
Elenco: Wu Jiang, Wang Baoqiang, Tao Zhao, Lanshan Luo, Jia-yi Zhang, Vivien Li Meng