Em gramática cinematográfica, exposição é o termo usado para exprimir a maneira como a trama de um filme se desnuda ao espectador. A exposição em Janela Indiscreta não é verbal, mas visual: bastam dois porta-retratos para sabermos que James Stewart namora Grace Kelly e se arrebentou numa corrida de carros. Marcas da Vida (Red Road, 2006) é um representante da era Big Brother - trata de vigilância constante e invasão de privacidade. A exposição do filme, porém, contraditoriamente, é mínima.
A diretora inglesa Andrea Arnold - em seu primeiro longa-metragem, que já levou o prêmio do júri no Festival de Cannes de 2006 - economiza nas palavras. Com um recorte de jornal, ficamos sabendo que Clyde (Tony Curran) saiu da prisão antes do tempo. Com os olhares atravessados que Jackie (Kate Dickie) troca com o seu sogro, aprendemos que algo não deu certo em seu casamento. O que vem depois, até o fim da metragem, é um monte de dúvidas. O que faz com que Jackie, funcionária do centro de vigilância de Glasgow, o famoso CCTV do Reino Unido, espie e persiga Clyde pelas ruas o tempo inteiro?
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O exemplo hitchcockiano não é só ilustração. Tanto o clássico quanto Marcas da Vida tratam de intimidade - e identidade - em um mundo dominado pela teleobjetiva. O caso é que não se desvenda uma pessoa à distância, mesmo com todos os olhares e todos os ângulos sobre ela. Esse é o paradoxo da modernidade, do acesso total à informação que, pelo excesso, representa acesso nenhum, que Andrea Arnold discute.
O espectador assume, pelas câmeras que Jackie controla no CCTV, o papel de voyeur. Ficamos sabendo que Clyde agora tem um serviço braçal, que ele transa com garotas no terreno baldio, que ele bebe com amigos, que ele mora em um edifício de apartamentos populares chamado Red Road. Não sabemos nada, porém, do que motiva Jackie a observá-lo. Uma diferença em relação a Janela Indiscreta está aí. Dividíamos com James Stewart apenas a curiosidade pelo outro e a busca do flagrante. Não há flagrantes em Marcas da Vida - o que tinha que acontecer já aconteceu.
E o que aconteceu Jackie não nos diz. A curiosidade dela pelo cara nasce de rancor, de atração, de medo, de ira? Marcas da Vida é um suspense primoroso justamente porque conserva, como poucos, esses mistérios. E a resolução do problema, tanto para Jackie quanto para nós, não se dá somente na imagem. (É nos suspenses que a imagem nos engana mais do que nunca.) A solução virá por meio de uma coisa rara nesses tempos de Second Life, de insulfilm, de CCTV, virá pelo contato.