Todo fã da franquia Pânico (Scream) conhece a sensação: assim que um filme é lançado, o nosso coração é tomado por um anseio absoluto de que tudo funcione bem, que crítica e público se encantem pelo resultado, porque, parte do prazer e da glória de ser um fã desses filmes, é poder defendê-lo por todas as suas qualidades diferenciais. O fã de cultura pop castiça entende que ela está presente em tudo que se escreve na história – de bom e de ruim. Rastrear e celebrar essa ambiguidade é o super-poder dos seguidores desse universo.
Scream é uma franquia slasher, um subgênero do cinema que tem em sua gênese a qualidade duvidosa, sendo quase necessário manter essa característica para continuar ocupando o lugar na categoria. Quando Tara (Jenna Ortega) diz no quinto filme que só assiste “horror elevado”, ela está se referindo a outro traço inevitável da abordagem artística desde o início dos tempos: a forma como a elegantização de uma obra é confundida com superioridade por seus apreciadores. Um filme de “horror elevado” pode ser maravilhoso porque é melhor executado... e um slasher pode ser maravilhoso porque é executado dentro de suas próprias limitações obrigatórias. É tudo bastante complexo; e quem provoca essa complexidade é a nossa necessidade de absorver valor e vaidade de tudo que consumimos.
Mas, o fato é que lá em 1996, quando o primeiro filme foi lançado, Kevin Williamson (o roteirista) tinha em mente provocar a audiência com a discussão desses códigos, sem abandonar o senso crítico, fazendo com que essa discussão não fosse apenas contemplativa; tomando providências para transgredir sem trair. É por essa razão que o assassino não é sobrenatural, é por essa razão que Sidney (Neve Campbell) não é uma sobrevivente passiva, é por essa razão que tivemos Gale (Courteney Cox) e Dewey (David Arquette)... O criador de Pânico queria divertir a plateia com a forma, mas queria desafiar e provocar com a estrutura.
Era inevitável, então, que o filme fosse um sucesso. Ele agradava os que procuravam pela violência de um slasher e agradava os que queriam “elevação”. A sequência final de todos os filmes - quando os assassinos explicam seus motivos - promovem uma originalíssima convergência criativa que, até hoje, só Scream conseguiu fazer. Ali está a crueldade do plano, o humor ácido dos executores dele, a força da sobrevivente, a fragilidade de seu lugar no mundo, a sagacidade da arquitetura dos acontecimentos e um impressionante discurso panorâmico do que é a presença da cultura pop na nossa existência. Ou – e essa é a graça da coisa toda – aquele é só um “papinho furado de mais um filme superficial com gente jovem e bonita sendo esfaqueada”. O mundo de Scream é rico a ponto de poder ser tudo, ser nada, ser a discussão desse tudo e a discussão desse nada. Isso é simplesmente genial.
O que melhora?
Dentro das regras de um filme slasher (com um assassino perseguindo vítimas sem armas de fogo), tudo depende de uma sequência. A partir do momento em que tivemos um Pânico 2 e um Pânico 3 (que aconteceram mais próximos um do outro), a pauta do roteiro precisava se dividir entre falar sobre as sequências como um todo e sobre as regras que a própria franquia tinha estabelecido. Quando Pânico 4 foi lançado 11 anos depois do 3, a concentração de tópicos era quase totalmente dedicada ao que a franquia tinha deixado como legado cinematográfico. Scream se descolou da metalinguagem indireta dos antecessores e se tornou um titã do próprio universo. Mas, sem nunca deixar de olhar para as mudanças que o tempo promovia na indústria.
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Quando Tara sobreviveu ao ataque da abertura do quinto filme, os novos responsáveis pela franquia deixaram o tom estabelecido; eles estavam ali para fazer por Scream o que Scream tinha feito pelos slashers lá nos anos 90: reverenciar sem deixar de provocar. Então, embora a primeira cena tenha acontecido do mesmo jeito que a franquia eternizou (com uma personagem feminina sendo atacada depois de um telefonema), dessa vez ela sobrevivia. Pânico 5 aconteceu mantendo essa dinâmica equilibrada e tomou duas decisões grandes: matar um dos originais e manter um número impressionante de sobreviventes para uma possível sequência.
Historicamente falando, slashers nunca tiveram muito interesse em desenvolver personagens. Quando Kevin Williamson fez com que Sidney, Gale e Dewey sobrevivessem, ele construiu uma relação de afeto entre eles e os fãs. Essa relação foi primordial para que a franquia se tornasse o que ela se tornou. Então, com o afastamento inevitável dos originais, os novos donos do jogo precisavam reconstruir esses afetos. Foi inteligente manter Tara, Sam (Melissa Barrera), Mindy (Jasmin Savoy) e Chad (Mason Gooding) vivos no quinto filme; e mais ainda depois do sexto filme, uma vez que a cada novo caos, os laços se fortalecem e vamos nos importando mais com eles. Ao contrário do que aconteceu com os slashers através do tempo, em Scream os assassinos não são mais importantes que os sobreviventes. O que é descartável é o criminoso – e bem por isso ele é sempre diferente.
Apesar disso, Ghostface é quase uma entidade alternativa. Todos que colocam a máscara se tornam parte de um séquito que reproduz não só seus métodos, mas seus trejeitos. Assim como aconteceu nos quatro filmes do passado, ele continua atrapalhado, falho, mas ainda assustador e implacável. No quinto filme a prioridade era explorar os novos sobreviventes; o que fez com que agora os novos roteiristas pudessem olhar mais atentamente para como lidar com o personagem. Pânico 6 fez coisas ousadas como mostrar um Ghostface sendo revelado logo na primeira cena e – logo depois – ser eliminado por outro Ghostface que tinha um plano melhor que o dele; subverteu a quantidade de assassinos e evitou cenas em que eles parecessem cômicos demais. Já era hora de encarar o “cara de fantasma” como uma peça móvel desse tabuleiro.
Por uma questão emocional, a ausência de Sidney foi sentida. Mas, há um grande movimento de conformidade por parte dos fãs que – justamente porque os afetos foram construídos corretamente – desejam a paz da personagem como se ela fosse real. Não ter Sidney envolvida nos novos assassinatos acabou sendo uma coisa boa também. O convite para Courteney fazer o sexto filme teria acontecido de qualquer forma (é uma questão de respeito); e por conta da profissão de jornalista, sempre fará sentido ver sua Gale envolvida nos acontecimentos. Contudo, Pânico 6 ainda conseguiu o feito de não permitir que ela fosse uma intrusa oscilante, fantasmagórica, sem brilho no enredo. A sequência em que Gale é perseguida talvez seja uma das mais brilhantes que já vimos na franquia (sobretudo porque ela nunca havia recebido uma ligação do assassino antes).
O que piora?
Talvez o maior problema da franquia Scream é como ela se vende. Em Pânico 6 a maior falha foi ter prometido uma Nova York que nunca vimos acontecer. Todo o filme poderia ter se desenrolado em qualquer lugar; não houve nem mesmo uma mera perseguição num ponto turístico marcante da cidade. E eu pergunto, precisávamos disso? Boa parte do “sucesso” dos métodos do Ghostface depende do mínimo de interferência externa. Ele é uma pessoa, não tem os superpoderes dos assassinos slashers clássicos. Então, ele não pode correr o risco de ser rendido.
Ao mesmo tempo em que os roteiristas foram inteligentes em dar a ele uma arma de fogo quando se viu num espaço cheio de gente (na lojinha de conveniência); eles foram oportunistas ao anunciar uma sequência numa Nova York que inviabiliza a ação do assassino. Ghostface não pode correr pelo Central Park atrás de suas vítimas; ele precisa estar em ambientes fechados, onde o controle esteja a seu favor. Pânico 6, então, não poderia se passar em Nova York? Sim, claro. O que talvez não tenha sido esperto foi vender a cidade como um grande cenário de crimes. O sexto filme poderia ter se passado lá, sem que isso fosse um argumento de marketing. Isso é, de certa maneira, preocupante. Com o sucesso do filme seis, é perigoso pensar que Ghostface começará a acumular milhas ao redor do país.
Essa “venda fraudulenta” se estende a outros setores da franquia, inclusive. Toda vez que uma promoção começa, ela anuncia que “todos são suspeitos”. Especula-se constantemente que um dos originais será o assassino, mas isso nunca aconteceu e provavelmente não acontecerá. Quando a especulação fica no lugar da audiência, estamos em território natural, mas vender as sequências sob essa suspeita é uma imensa bobagem. Sidney nunca será a assassina, nem Gale, sem Sam, nem Tara, nem Kirby, nem qualquer uma das pessoas que foi eleita pela estrutura como um sobrevivente. Isso por uma razão muito simples: Scream é um conto de sobrevivência que prioriza a ideia de que seus personagens estão enfrentando o peso mortal do estereótipo. Você pode ceder ao mal que combate? Pode. Os sobreviventes de Scream fariam isso? Não.
[Atenção: a partir daqui há spoilers do filme. Não leia se não quiser saber o que acontece.]
Isso nos leva, é claro, à revelação dos assassinos. Seguindo os padrões dos originais, o motivo do quinto filme foi a reconstrução dos códigos do gênero. O motivo do sexto filme esbarra na velha vingança pura e simples, que foi usada como justificativa para um dos assassinos do primeiro, do segundo e para o único assassino do terceiro. Talvez a revelação do quarto filme e do quinto filme sejam das melhores justamente porque fogem ligeiramente desse padrão. Embora a existência de três assassinos seja muito impactante em cena, a busca pelo motivo foi óbvia e dependeu de um GRANDE descolamento da realidade. De certa forma, é entediante que a franquia continue trabalhando com a ideia de que os assassinos são quase sempre parentes nunca mencionados dos assassinos anteriores – e é fascinante como, ao mesmo tempo, eles subvertem isso fazendo com que dessa vez a sobrevivente seja também parte da árvore genealógica do assassino original (e vamos falar sobre isso num outro texto, dedicado inteiramente ao futuro sem Sidney).
Enfim, o Universo Scream se expandiu. Ele ainda olha para trás, é claro. Tudo nessa franquia é sobre olhar para trás; razão pela qual ela é tão especial para todos nós. Se tudo vai continuar dando tão certo, não sabemos. Se der errado, eles ainda terão escopo para falar sobre isso. Ser fã de Scream é maravilhoso justamente porque todos os caminhos levam à celebração da cultura pop em seus acertos e também em suas falhas. O que melhora... o que piora... tudo isso passa pelo filtro metalinguístico que sustenta Scream na sua posição de observadora das mimeses que vivem nos porões da história cinematográfica. Se você sente vontade de pular e gritar durante uma sessão porque percebeu que na tela se projeta o valor da sua admiração, não se julgue (e nem aceite julgamentos). Scream é sobre lembrar... e a catarse reside na memória.