A caminho de completar 30 anos como diretor, tendo em seu currículo um dos filmes mais importantes da história do cinema brasileiro, Central do Brasil (1998), o carioca Walter Salles volta às telas nesta quinta-feira com Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang. Seu novo longa-metragem é um documentário que nasceu como um tributo a um dos maiores realizadores chineses da atualidade e virou algo mais. Entre (muitas) outras coisas, o filme é um ensaio sobre contradições políticas, estéticas e (acima de tudo) sentimentais da China, entre a contemporaneidade e a tradição, entre o progresso, a informação e a preservação de ritos milenares de convivência. O projeto significou o regresso de Salles ao país, que visitou nos anos 1980, quando trabalhou com seu irmão, João Moreira, no ensaio documental O Império do Centro, feito para a TV. Na entrevista a seguir, Salles explica seu fascínio por Jia, que ganhou o Leão de Ouro no Festival de Veneza de 2006 por Em Busca da Vida, conquistou o prêmio de melhor roteiro em Cannes em 2013 por Um Toque de Pecado e soma outros 34 prêmios internacionais. Mais do que falar sobre seu colega (de quem é fã), Salles faz um balanço da realidade da China, nas telas e no dia a dia, e reflete sobre a atual situação do nosso cinema, prometendo voltar à ficção em 2016.
De que maneira o realismo poético de Jia Zhang-ke serve como um colírio frente às estéticas de reality show e de videoclipe que inundaram o cinema hoje?
WALTER SALLES: Nenhum país sofreu mutações tão brutais nos últimos 20 anos quanto a China, e nenhum realizador filmou o impacto que esse processo teve sobre o homem como Jia Zhang-ke. Poucos cineastas falam tão bem do nosso tempo, da passagem da adolescência para a idade adulta, dos efeitos trazidos pela globalização quanto ele. O que Jia oferece é uma compreensão diferente de tudo aquilo que forma o cinema: o espaço, o tempo, a composição dos personagens. O que Jia nos oferece talvez seja algo que se relacione a uma tradição cultural e estética de seu país. Na pintura chinesa do século 18, geralmente havia uma parte do quadro envolto pela bruma. Ao espectador, cabia imaginar o que poderia existir ali. A geografia se queria por definição incompleta e a realidade, fragmentada. Os reality shows e os videoclipes que inundam a TV e a net hoje oferecem exatamente o contrário: uma imagem totalmente preenchida, sem mistérios, sem espaço para interpretação. Em seus filmes, Jia Zhang-ke nos devolve a possibilidade de completar o quadro, a narrativa, através do cinema.
Como foi pra você o regresso à China nos rastros de Jia? O que aquele país representa hoje como potência política e estética?
SALLES: A viagem para realizar o documentário na região de Shanxi, no norte do país, perto da fronteira com Mongólia, foi na verdade a terceira incursão que fiz à China. Na primeira vez, eu tinha 18 anos e viajei por quase um mês sozinho na China, quando o país saía dos anos da Revolução Cultural. Depois, em 1986, participei de parte das filmagens do documentário que meu irmão João dirigiu sobre a China, O Império do Centro. Fiquei seis meses montando essa série documental que foi exibida na TV Manchete. O país me era, portanto, em parte, conhecido. Mas jamais poderia imaginar o quão brutal seria a transformação que presenciei agora, a de uma cultura que passou da economia planificada para outra forma de ortodoxia, a do mercado.
Imagem do documentário Jia Zhang-ke, Um Homem de Fenyang
De que maneira seus documentários, mudam o seu vocabulário cinematográfico, marcado por ficções de sucesso, como Diários de Motocicleta (2004) e Linha de Passe (2008)? O quanto essa investigação documental sobre a China de Jia dialoga com seus primeiros docs, como Socorro Nobre, que você lançou em 1996?
SALLES: Gosto de retornar aos documentários, entre dois filmes de ficção, porque eles nos projetam diretamente na vida como ela é, no tempo que corre, e permitem o contato com realidades que você não conheceria de outra forma. Sempre me identifiquei com a possibilidade de o cinema ser uma forma de desvendar aquilo que ainda não conhecemos, um potente instrumento de indagação sobre o mundo. O documentário, com sua imprevisibilidade e capacidade de nos surpreender constantemente, acaba sendo uma forma de irrigar a ficção. Sem Socorro Nobre, não haveria Central do Brasil. Nos documentários que fiz sobre Franz Krajcberg, Socorro Nobre ou Tomie Ohtake é sempre a geografia humana, e a maneira com que as transformações da sociedade afetam o homem, que me interessaram antes de mais nada. Esse talvez seja o ponto de encontro entre os documentários que realizei.
Que fascínio o cinema da China ainda desperta hoje? Quem são os novos Jias, os novos grandes autores da Ásia nas telas?
SALLES: O último capítulo da serie O Império do Centro, que meu irmão (João Moreira Salles) dirigiu era dedicado a Terra Amarela, de Chen Kaige, um dos filmes mais marcantes da quinta geração de cineastas chineses, que vieram do estúdio de Xian. De lá também veio Zhang Yimou, o cineasta mais ativo da quinta geração. Infelizmente, a quinta geração foi perdendo força à medida que seus filmes se tornaram mais e mais oficiais. A sexta geração de cineastas, da qual faz parte Jia Zhang-ke, colide novamente com a ordem estabelecida. Seus filmes são de uma aguda lucidez, mantêm uma independência crítica em relação à realidade chinesa. Não é por acaso que os três primeiros filmes de Jia foram proibidos na China, e o mesmo aconteceu mais recentemente com Um Toque de Pecado (laureado com o prêmio de melhor roteiro no Festival de Cannes de 2013, por um júri presidido por Steven Spielberg). O que torna o cinema de Jia Zhang-ke realmente único é, justamente, o fato de que ele se manteve constantemente à escuta das transformações brutais ocorridas dentro do seu país, e conseguiu traduzi-las em cada um de seus filmes e personagens. Sua obra é feita de uma extrema coerência. Cada filme ecoa no outro, como as notas das canções que elege. E, talvez por isso, nenhum desses filmes é “confortável” para um governo que restringe a liberdade de expressão. Quanto aos outros jovens cineastas que se expressam com a mesma inventividade na China, penso em Wang Bing, autor do extraordinário A Oeste dos Trilhos, um documentário de nove horas sobre uma cidade de dois milhões de habitantes que é desmobilizada. Como Jia Zhang-ke, no filme Em Busca da Vida, são essas transformações sobre o homem que interessam a Wang Bing.
Existe hoje no cinema brasileiro alguém que filme o Brasil como Jia filma a China? O que nos falta pra isso?
SALLES: A China é hoje uma terra em transe, um laboratório a céu aberto, e não acho que essas mesmas condições descrevem o Brasil ou qualquer outro país hoje. O que existe, entre nós, são excelentes realizadores como Kleber Mendonça Filho, que, com uma acuidade e sensibilidade comparáveis às de Jia, oferecem um reflexo potente do seu tempo e do seu pais. É o que ocorre em O Som ao Redor (primeiro longa de Kleber, lançado em 2013).
Quais são seus novos passos na ficção? Existe algum plano de filmar no Brasil?
SALLES: Estou nesse momento finalizando um roteiro. Ao mesmo tempo, uma segunda ideia toma corpo. Se tudo der certo, espero voltar à ficção em 2016.
Aproveitando a deixa: neste 2015 completam-se 20 anos de Terra Estrangeira, seu primeiro sucesso como diretor. Nele, você falava sobre brasileiros que queriam deixar o país em meio ao confisco de recursos da Caderneta de Poupança empreendido pelo governo Collor. O que aquele olhar sobre o desterro significa pra você hoje? Aqueles personagens ainda vivem?
SALLES: Terra Estrangeira foi realizado em pleno desgoverno Collor, quando o Brasil deixa de ser uma terra de imigração e passa a ser um país de onde 800 mil pessoas partiram, tentando se reinventar em uma outra latitude. É um momento único da nossa historia, um ponto de inflexão que Daniela Thomas e eu queríamos registrar. Confesso que, ainda hoje, fico me perguntando onde estará Alex, a personagem de Fernanda Torres no filme. E, à maneira de Jia Zhang-ke, fico me perguntando o que ela acharia deste país tão complexo e de difícil decodificação que é o Brasil hoje.