Em 2020, é impossível duvidar da popularidade dos super-heróis. Nos cinemas, o gênero emplaca 3 das 10 maiores bilheterias de todos tempos e já foi reconhecido em grandes premiações como Oscar e Festival de Veneza. Porém, antes de se tornar esse fenômeno cultural, os heróis eram considerados meramente “coisa de criança”, e precisaram percorrer um longo caminho sair desse estereótipo. Se hoje produções como Deadpool e Coringa ousam desafiar (e até rir) do que pode ser feito com o gênero, é por conta de uma explosão iniciada 20 anos atrás com X-Men: O Filme, um longa que nasceu envergonhado de sua natureza quadrinística.
Veja bem, X-Men não foi a primeira produção baseada em quadrinhos a chegar aos cinemas. Desde clássicos absolutos como Superman de Richard Donner e Batman de Tim Burton, passando pelos esquecíveis Monstro do Pântano e Justiceiro, até os queridos Tartarugas Ninja e O Corvo, as HQs tinham uma longa estrada nos cinemas. Porém, por se direcionar a um público infanto-juvenil, muitos de seus atributos vendiam uma imagem supostamente “ingênua”, como se adultos não pudessem curtir um produto com enredo simples protagonizado por pessoas vestindo trajes com cores berrantes, que por vezes incluíam cuecas por cima da calça. Com o intuito de mudar essa visão, a Fox contratou Bryan Singer, diretor que tinha uma clara intenção de mostrar que pessoas com superpoderes também poderiam ser levadas a sério.
A versão da equipe liderada pelo Professor Xavier que chegou aos cinemas equilibrou a essência dos quadrinhos com uma roupagem nova e atualizada que falava com o público de sua época. Os uniformes coloridos deram lugar a trajes de couro, a luta entre bem e mal ganhou camadas ao tocar em assuntos como preconceito e aceitação (algo também abordado em vários quadrinhos), tudo isso em uma produção cheia de ação e com uma trama construída para dar importância e propósito para cada um de seus personagens. Essa nova roupagem fez de X-Men: O Filme um sucesso, transformando seu orçamento de US$ 75 milhões em uma estrondosa bilheteria de mais de US$ 296,3 milhões. Hollywood entendeu o recado, e passou a ver os super-heróis com menos descrença. Essa aposta se provou certa dois anos depois, com o lançamento do primeiro filme do Homem-Aranha.
Se os X-Men tiveram que mudar um pouco o tom em relação ao seu material base para abrir as portas dos cinemas para os super-heróis, o Homem-Aranha teve menos pudores em se assumir um filme de quadrinhos. Não que o diretor Sam Raimi não tenha feito pequenas atualizações em relação ao material-base, como a escalação de atores adultos para papéis adolescentes, as famosas teias orgânicas e até o visual do vilão Duende Verde, que passou a vestir uma armadura. Mas o filme do Cabeça de Teia era colorido e otimista, levando a popularidade do personagem para o público mainstream. Com um orçamento de US$ 139 milhões (quase o dobro de X-Men) e uma arrecadação de impressionantes US$ 821,7 milhões, Homem-Aranha foi o filme de maior bilheteria nos Estados Unidos em 2002. Chegava ao fim a resistência de grandes estúdios em fazer filmes de super-heróis.
O estrondoso sucesso das duas produções foi responsável por uma enorme leva de filmes baseados em HQs. A própria Fox encomendou novos filmes dos X-Men, além de aproveitar outros títulos da Marvel que estavam sob seu domínio, como Quarteto Fantástico, Demolidor e Elektra. Homem-Aranha ganhou novas continuações e até quadrinhos pouco conhecidos como MIB - Homens de Preto ganharam adaptações. Porém, a principal reação a esse sucesso foi o retorno do Batman nos cinemas. Após o lançamento de Batman Eternamente e Batman & Robin, fracassos de público e crítica, o estúdio havia deixado o personagem na geladeira, mas resolveu dar uma nova chance pelas mãos de um cineasta jovem e promissor chamado Christopher Nolan. Assim como os X-Men haviam feito 5 anos antes, Batman Begins trazia uma mistura entre características clássicas do herói com elementos atuais para criar uma versão definida pelo clichê “sombrio e realista”. Ainda que não tenha feito o mesmo sucesso de seus contemporâneos, Begins abriu as portas para Batman: O Cavaleiro das Trevas, primeiro filme de super-heróis a ultrapassar a marca de US$ 1 bilhão nas bilheterias. Curiosamente, esse não foi o único filme de super-heróis protagonizado por um bilionário a chegar aos cinemas em 2008.
Assistindo concorrentes como Fox e Sony lucrar com personagens baseados em seus quadrinhos, a Marvel lançou o Marvel Studios e decidiu fazer filmes protagonizados pelos heróis que ainda detinha os direitos cinematográficos. Com esse intuito, o estúdio lançou Homem de Ferro, longa dirigido por Jon Favreau e protagonizado por Robert Downey Jr. que discretamente iniciou o que viria a ser conhecido como Universo Cinematográfico da Marvel, o MCU. A partir da estreia de Tony Stark, criou-se uma franquia de filmes que funcionavam separadamente ao mesmo tempo em que construíam um coeso universo compartilhado, assim como a Casa das Ideias havia feito nos quadrinhos quase 40 anos antes.
A partir daí surgiram filmes como O Incrível Hulk, Thor, Capitão América e Homem de Ferro 2 até culminar em Os Vingadores, filme-evento que não apenas introduziu a equipe, como também consolidou a franquia como um fenômeno pop. Não que ela seja perfeita, já que a chamada “fórmula Marvel” dá origem a produções homogêneas que por vezes se mostram descartáveis. Porém, é inegável o sucesso e a rentabilidade de um universo que após 23 filmes conseguiu tomar o posto de maior bilheteria de todos os tempos com Vingadores: Ultimato.
Com o sucesso do MCU, o conceito de universo compartilhado virou moda, levando grandes franquias a tentar replicá-lo sem grande sucesso. O exemplo mais notável é o DCEU, universo de filmes da DC Comics que foi inaugurado em 2013 com Homem de Aço. As produções seguintes não se mostraram o sucesso esperado pela Warner Bros, indo do divisivo Batman vs Superman ao execrado Esquadrão Suicida, sem falar em Liga da Justiça, que reflete em tela os problemas nos bastidores. Porém, essa empreitada teve também seus pontos altos com Mulher-Maravilha, o primeiro filme de herói protagonizado por uma mulher, o modesto sucesso de longas como Shazam! e Aves de Rapina, e especialmente o filme solo do Aquaman, personagem que foi tratado como piada por quase 80 anos, que se tornou a maior bilheteria da DC na história.
Esse sucesso escancarou a liberdade dada aos realizadores para desafiar as “regras” do gênero, com destaque para o primeiro filme do Deadpool. Lançado em 2016, o longa nasceu do vazamento de um teste de filmagem que colocava Ryan Reynolds novamente no papel do Mercenário Tagarela. Porém, ao contrário do que havia acontecido com o personagem em X-Men Origens: Wolverine, ele fazia jus à sua versão nos quadrinhos: violenta, exagerada e com um humor absurdo que levou a Fox a arriscar num projeto para maiores de 18 anos. Sucesso de público e crítica, o longa foi responsável não apenas pela popularização do personagem, mas também por mostrar que era possível fazer filmes de super-heróis para maiores - um trauma estabelecido pelo fracasso de Watchmen nas bilheterias de 2009.
Com a abertura para fazer filmes de heróis voltados ao público adulto, a Fox encomendou uma sequência para Deadpool e a produção de Logan. Se o primeiro utilizava sua censura alta para fazer piadas absurdas e obscenas em meio a um festival de violência gratuita, o segundo abraçou uma veia faroeste para contar a conclusão da jornada do Wolverine de Hugh Jackman, que estreou naquele filme dos X-Men em 2000. Além de se tornar um novo sucesso, a produção se sagrou como o primeiro filme de super-heróis live-action a ser indicado a Melhor Roteiro Adaptado no Oscar.
Por falar em Oscar, é preciso destacar as duas últimas edições da premiação. A cerimônia de 2019 gerou grande ansiedade para os fãs de super-heróis por causa de Homem-Aranha no Aranhaverso, que levou o troféu de Melhor Animação para casa, e Pantera Negra, filme da Marvel indicado a 7 categorias, incluindo a inédita Melhor Filme. Antes mesmo da premiação, o longa já havia sido fortemente elogiado por toda a sua produção, que incorporou afrofuturismo e questões sociopolíticas na aventuresca “fórmula Marvel” - elogios esses que ganharam força com a vitória do longa em Melhor Figurino, Design de Produção e Trilha Sonora. A boa fase dos filmes baseados em HQs continuou no ano seguinte, quando Coringa recebeu 11 indicações na premiação. Dono da maior bilheteria de filmes para maiores de idade na história, o filme levou as estatuetas de Melhor Ator para Joaquin Phoenix e Melhor Trilha Sonora, ampliando a estante de troféus da produção que já contava com Globos de Ouro, BAFTAs e até um Leão de Ouro do prestigiado Festival de Veneza.
Espaço também para HQs alternativas e nacionais
Nesses 20 anos, não foram apenas os quadrinhos de herói que ganharam espaço. Produções alternativas e independentes também passaram a ganhar adaptações para os cinemas. É o caso de filmes premiados como Estrada para Perdição e Azul é a Cor mais Quente, além de queridinhos como Kick-Ass e Scott Pilgrim contra o Mundo, e até experimentais como Anti-Herói Americano.
O mesmo pode ser dito sobre HQs brasileiras. Nesses 20 anos, grandes títulos nacionais também chegaram aos cinemas, com destaque para Turma da Mônica - Laços e Tungstênio. Enquanto o primeiro marcou a primeira versão live-action da turminha criada por Mauricio de Sousa em uma produção assinada pelo Daniel Rezende (Bingo: O Rei das Manhãs), o segundo trouxe um recorte da realidade brasileira de forma poética e crua através de uma adaptação de Heitor Dhalia (O Cheiro do Ralo) para a clássica e premiada HQ de Marcello Quintanilha. De formas diferentes, as produções abraçaram públicos distintos e tiraram qualquer dúvida de que também se faz filme de quadrinhos no país.
Essa gradual evolução tanto no Brasil, quanto no mundo, prova que a indústria passou a apostar cada vez mais em filmes inspirados em quadrinhos nesses 20 anos. Ainda que seja difícil prever como o gênero continuará se desenvolvendo, com possibilidades que vão desde esgotamento até reinvenção, é fato que as HQs deixaram sua marca na história do cinema. Um feito e tanto para adaptações que começaram envergonhadas e hoje dominam a cultura pop.