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Artigo

O legado de Naya Rivera em Glee

Passagem da atriz no seriado foi pautada pelo amor e pela aceitação

13.07.2020, às 18H22.
Atualizada em 14.07.2020, ÀS 19H31

Quando Naya Rivera foi escalada para integrar o elenco de Glee, sua personagem não era nada mais que um contingente inevitável. Glee se passava num High School e era claro que por mais que os figurantes pudessem ser trocados quando a produção quisesse, alguns rostos precisavam permanecer os mesmos. Quinn (Dianna Agron), personagem central do time das líderes de torcida, precisava da clássica companhia maliciosa que configura os arquétipos do gênero. Lá foram Heather Morris e Naya Rivera para essas posições. Brittany e Santana apareceram nos primeiros episódios como elenco de apoio, mas nenhuma das duas estava disposta a ficar nas sombras.

Em entrevistas que deu após a personagem ter crescido, Naya disse que durante metade da primeira temporada, aproveitava cada pedacinho de cena que tivesse para deixar Santana visível, marcante. Sua voz cheia de força e rouquidão, já era um trunfo na manga da equipe criativa da série, que foi abrindo caminho para a construção de Santana e Brittany bem aos poucos, com uma personalidade bem diferente para cada uma. Naya, latina, desmedida, sensual, inspirou Ryan Murphy a colocar na boca de Santana o combate definitivo a qualquer hipocrisia que rondasse a sala do coral. Santana era capaz de monólogos afiados que colocavam cada um dos colegas em seus devidos lugares. Não demorou muito tempo para que começasse a se tornar uma das favoritas.

Mesmo que no começo sua voz tenha aparecido em meio a números coletivos como os de “Like a Virgin” - no tributo à Madonna - Naya era precisa, criativa na forma como se encaixava nas músicas e isso tornou seu trabalho identificável, o que num lugar onde havia tantas vozes incríveis, era muito difícil e muito necessário também. No meio de tanta gente, era natural que houvesse um desnivelamento de preferências, fãs que gostavam da voz de um ator, mas nem tanto do personagem. Com Naya, não. Sua voz era uma unanimidade e o papel de Santana na série era tão importante quanto. Por mérito, ela conquistou uma storyline, uma base de fãs e um legado que permaneceu com ela até o fim.

Glee Club

Glee era uma série com um propósito muito particular para seu criador. A série nasceu para falar do oprimido, para falar do quanto o mundo não está disposto a vencer arquétipos e preconceitos na hora de lidar com o outro. Na sala do coral, a diversidade dos presentes era o desafio da equipe de roteiristas. Eles precisavam convencer o público de que valia a pena torcer para que quem estava na base da pirâmide de popularidade, mas que também era válido torcer para que quem estivesse no topo, revisse as próprias atitudes e pudesse sair da esfera de maldade que costuma ser parte inerente de quem vive esse privilégio. Com tantas séries adolescentes onde a beleza, a magreza e a riqueza eram pilares definitivos, era bom ver uma produção que se comunicava com uma parte diferente (e maior) do público.

Santana fez um caminho interessante, porque quando a série começou ela estava no topo. Linda, magra, amiga da capitã do time, disputada pelos rapazes e invejada pelas garotas. Tudo estava errado por dentro, mas ela jamais iria admitir. Ao entrar dentro do Glee Club só para infernizá-lo, foi assumindo para si mesma que aquele ambiente de arte era mais confortável, mais bonito, mais colorido e que fazia bem estar ali. Então, de personagem que jogava raspadinha de gelo na cara dos outros, ela passou a ser uma das personagens que levava o golpe. Desceu na pirâmide de popularidade, mas redescobriu sensações e prazeres que a fizeram, pela primeira vez, realmente feliz.

Essa foi a manobra que cobriu quase todos os personagens que estavam na linha primordial da popularidade. Aos poucos, os roteiros iam esclarecendo que a popularidade é uma membrana que seus detentores usam para disfarçar imperfeições; e são as imperfeições que nos tornam reais, verdadeiros. São elas que nos tornam perfeitos, por mais louco que isso pareça. A raiva, a maldade ocasional de Santana, escondiam uma homossexualidade apaixonada, ansiosa para chegar à superfície e um amor por Brittany que era imenso como são as grandes histórias de amor do nosso tempo. Glee, em essência, era sobre isso: aceitar o amor seja como ele fosse e dar grandes lições sobre tolerância nesse processo.

Brittana

Durante a série, uma das grandes propostas de Ryan Murphy era dar aos personagens gays o mesmo destaque que os personagens héteros tivessem. Isso incluía os casais. Assim, Santana e Brittany protagonizaram uma história de amor que começou como começam quaisquer histórias de amor dentro do domínio da ficção. Primeiro elas eram amigas, depois a amizade se confundia com desejo, depois elas precisavam lidar com isso e por fim, não dava mais para manter tudo misturado, porque os sentimentos foram se tornando incontroláveis. Então, a relação delas teve desencontros, idas e vindas, mal-entendidos e passou por todos os processos naturais que a ficção sempre delegou apenas ao formato homem e mulher. Namoro, noivado, casamento. O casal brittana teve direito a tudo que mereceu.

A trajetória de Santana foi diferente das outras trajetórias de aceitação que a série apresentou. Seus pais aceitavam que ela fosse lésbica, mas sua avó, não. Foi a maneira que a equipe encontrou de falar para mais uma fatia da audiência que não encontrava obstáculos dentro de casa, mas em outros membros da família por quem sentiam um afeto tão grande quanto. Naya nos deixou sequências importantíssimas sobre o quanto o amor das pessoas com quem você compartilha o sangue é importante, mas não imutável. O amor, seja ele qual for, precisa de dedicação, ele não supera tudo automaticamente. Santana encontrou a felicidade ao final da série e aprendeu lições importantes sobre como ser uma pessoa melhor, o que ela nem sempre foi, mas tentou ser.

De todas as palavras que poderiam descrever Glee, a palavra “maldição”seria a última delas. Ao falar sobre o underdog, sobre o oprimido, a série confortou fãs ao redor do globo e reeducou não só seus espectadores como a própria mídia acerca de muitos assuntos relevantes para o tópico da diversidade. Imagem corporal, transgênero, orientação sexual, racismo... Glee tinha um dançarino na cadeira de rodas, uma vilã com Síndrome de Down e mais uma lista respeitável de situações em que os limites eram desafios e não o fim da linha. Além de tudo, a qualidade musical fazia pelo público outro pequeno milagre: tornava tudo divertido. Isso parece uma maldição para você? O que Glee tem é uma história de benfeitorias, proporcionadas por uma equipe e um elenco que passa por tragédias e pesares como qualquer um de nós. Glee não deixou uma maldição. Glee deixou um legado de afeto e qualquer membro do elenco que se vá, só poderá nos deixar saudades.

A confirmação da morte de Naya Rivera nesse dia 13 de Julho é emblemática em vários sentidos. Mas, teorias estapafúrdias sobre suicídio e abandono não são justas com ela e nem com os que a amavam. Dia 13 de Julho também é o dia em que Cory Monteith partiu. No episódio em tributo a ele, Naya cantou a música “If I Die Young”, que mesmo que tenha tantos novos apelos emocionais agora, pede que façamos por ela o mesmo que ela pediu que fizéssemos por Cory naquele dia: Vamos deixá-la partir com as palavras de uma canção de amor.

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