Todo fã de HQ que se preze sabe que Jack Kirby (1917-1994) é um dos grandes responsáveis pela existência do mercado de quadrinhos dos EUA, pelo sucesso da Marvel Comics nos últimos 50 anos, por um naco importante da mitologia da DC Comics e que é uma referência inescapável para dez em cada dez quadrinistas.
Comemorar os 100 anos de seu nascimento é celebrar todas essas contribuições indiscutíveis e bem conhecidas de "King" Kirby. Também é a chance de lembrar alguns fatos pouco conhecidos ou pouco lembrados da biografia e da carreira do desenhista, escritor, criador, ex-militar, ex-delinquente juvenil e aficionado por charutos. Confira abaixo alguns deles.
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O pseudônimo-homenagem
Jack Kirby nasceu Jacob Kurtzberg e adotou pseudônimos quando começou a trabalhar com HQs: Jack Curtiss, Curt Davis, Ted Grey. "Jack Kirby" foi inventado em 1939, quando Kurtzberg tinha três anos de carreira. Foi o nome que pegou. Além de ser próximo da pronúncia do seu nome real, era uma homenagem a um de seus ídolos no desenho, o cartunista Rollin Kirby (1875-1922), primeiro vencedor de um Pulitzer por cartunismo. Kurtzberg também achava que "Jack Kirby" soava forte como o nome do ator James Cagney, e brigava com quem dissesse que usava pseudônimo para esconder que era judeu.
Delinquente juvenil
Kirby teve uma infância pobre no Lower East Side de Manhattan. Ele, o irmão, o pai e a mãe dividiam a mesma cama num apartamento de cortiço. Como acontece com vários garotos nessas condições, Kirby virou um delinquente juvenil, envolvido com gangues e brigas sérias, sangrentas, nas ruas do bairro. Ele acabou largando essas companhias na adolescência. Seus amigos delinquentes, ele contava, viraram "gângsteres ou foram presos ou foram mortos".
O funcionário de Eisner
Um dos primeiros empregos de Kirby foi de desenhista no famoso estúdio Eisner & Iger, co-fundado pelo famoso Will Eisner - outro que faria 100 anos em 2017. Eisner, só alguns meses mais velho que Kirby, havia ligado o tino empresarial cedo numa época em que os quadrinhos estavam com tudo, os fins dos anos 1930. Os dois não trabalharam juntos muito tempo, mas hoje são ambos referência indiscutível no quadrinho mundial.
Desaforo
Os tempos de gangues de rua, além de inspiração pras HQs, renderam histórias marcantes na vida adulta. A primeira, contada na graphic novel O Sonhador, de Will Eisner, trata de quando um mafioso foi importunar os donos do estúdio Eisner & Iger. Kirby arregaçou as mangas e escorraçou o bandido. Outra história, antes da entrada dos EUA na Segunda Guerra, é de quando simpatizantes do nazismo foram ao prédio da Timely Comics acertar contas pela famosa capa do Capitão América socando Hitler. Kirby arregaçou as mangas de novo, desceu até o lobby... e não encontrou ninguém.
Batedor e cartógrafo
Convocado para servir nas forças armadas durante a Segunda Guerra Mundial, Kirby ganhou destaque por seu talento artístico: seu comandante o destacou como batedor, o cara que vai conferir o campo inimigo antes do ataque e volta com um mapa do local. Como se esse trabalho arriscado não fosse o bastante, Kirby foi testemunha da libertação de um campo de concentração e quase teve a perna amputada devido a uma ulceração causada pelo frio. No total, ele serviu dois anos no exército em plena guerra.
Romance lucrativo
Em 1947, Kirby e seu parceiro Joe Simon decidiram que a grande onda era fazer quadrinhos românticos: histórias de namoro adolescente. Foram à editora Crestwood e fizeram um acordo: eles produziriam a nova revista Young Romance com adiantamento zero, mas ficariam com 50% dos lucros. Dois anos depois, Kirby comprou uma casa para sua família em Long Island ; Young Romance já tinha ganhado uma série derivada, Young Love, e as duas vendiam dois milhões de exemplares por mês.
Editora própria
Kirby e Joe Simon resolveram apostar as fichas numa própria editora em 1953. A Mainline Publications começou com quatro séries: uma western, uma policial, uma romântica e uma de guerra. A de western durou cinco edições; as outras, menos. A editora foi atropelada pela concorrência, processos e o movimento anti-quadrinhos da época. Foi à falência. A principal vítima foi a parceria Kirby/Simon, que na década anterior havia criado ninguém menos que o Capitão América. Joe Simon deixou os quadrinhos com a falência.
O cara das colagens
Kirby já havia aparecido na pop art, inadvertidamente, quando uma capa de Young Romance foi parar num dos quadros Richard Hamilton. Se a Arte com A maiúsculo podia, ele também ia fazer. Em meados dos anos 1960, há várias edições de Quarteto Fantástico que se servem de fotos ou reaproveitam outras imagens nas páginas, interagindo com os desenhos kirbyanos por meio de colagens. Ele voltaria a usar a técnica em trabalhos dos anos 1970, como Novos Deuses.
Kirby Krackles
Como desenhar raios? Como representar energia pura? E de um jeito que fique impactante, que marque o leitor em um gibi que é plano e não se mexe? Kirby respondeu com: bolinhas pretas. Sobretudo a partir dos anos 1960, o padrão de bolinhas pretas conhecido como "Kirby Krackle" ficou conhecido como uma das técnicas que identifica o trabalho de Kirby - e influenciou vários artistas a partir daí. Hoje você encontra até brushes de Photoshop e Illustrator que geram os Kirby Krackles automaticamente.
Comic-Con
Em 1969, Shel Dorf, um dos idealizadores da Comic-Con de San Diego, disse a amigos que faria um grande evento de quadrinhos. Pegou o telefone, discou um número e quem atendeu foi... Roz Kirby, a esposa de Jack. Dorf já tinha combinado tudo com Jack e queria mostrar aos amigos - que queria de colaboradores na convenção - que tinha contatos. Se o cara tinha até o telefone de Jack Kirby e convencia Jack Kirby a participar, esse cara podia tudo. A primeira Comic-Con aconteceu no porão de um hotel em San Diego; atualmente, atrai mais de 100 mil pessoas à cidade todo ano.
Argo Fuck Yourself
Nos anos 1970, Kirby foi contratado para fazer concepts do filme Lord of Light, baseado em um livro sci-fi. O filme nunca aconteceu, mas o produtor responsável acabou aproveitando os desenhos quando um amigo da CIA precisou se disfarçar como produtor de cinema no Irã - e salvar reféns na embaixada americana em Teerã. A trama real virou o argumento de Argo, Oscar de melhor filme em 2012. Kirby não tem o nome mencionado, mas o ator que interpreta o desenhista de produção, em uma cena de segundos, é identificado nos créditos como "Jack Kirby".
Fãs em casa
Apesar de ser um workaholic notório, que passava 10 a 12 horas todos os dias no porão de casa, debruçado na prancheta, Kirby não se negava a falar com fãs. Seu endereço e telefone eram de conhecimento público e ele convidava quem quisesse a conhecer seu estúdio e bater papo - desde que ele não tivesse que parar de trabalhar. A esposa Roz inclusive preparava lanche para os convidados. Muitos quadrinistas de hoje serviram-se de dicas de Jack ao pé da prancheta, assim como de sanduíches de mortadela.
O prêmio Jack Kirby
Antes de o Prêmio Eisner virar sinônimo de "Oscar dos quadrinhos", a indústria de HQ dos EUA votava seus melhores com um Prêmio Kirby. Patrocinado pela revista Amazing Heroes e com cerimônias de premiação na Comic-Con de San Diego, o troféu só foi concedido três vezes: em 1985, 1986 e 1987. Uma disputa entre os organizadores acabou com o troféu e levou à criação dos dois prêmios atuais mais conhecidos nos EUA: o Eisner e o Harvey.
O túmulo
Kirby faleceu de insuficiência cardíaca em 6 de fevereiro de 1994. Estava na sua casa em Thousand Oaks, Califórnia. Quem quiser ir à cidade e prestar uma homenagem ao criador pode comparecer ao Pierce Brothers Valley Oaks Memorial Park, onde ele está enterrado. A lápide registra o pseudônimo de Jacob Kurtzberg, datas de nascimento e morte, mais uma frase indiscutível: "Uma Inspiração para Todos".
Vinte anos depois
Kirby passou seus últimos 15 anos de vida insatisfeito com a Marvel. Nos anos 80, a indústria de quadrinhos se mobilizou para que a editora devolvesse os originais do autor - que a Marvel devolveu, em parte. Após a morte, a família Kirby processou a editora e pediu a parte do autor nos lucros com todos os personagens de sucesso que ele ajudou a criar. Antes de o processo chegar à Suprema Corte dos EUA, a Marvel fez um acordo extrajudicial com a família Kirby. O acordo é secreto, mas fala-se em dezenas de milhões de dólares para manter a família financeiramente tranquila por algumas gerações.
Jack Kirby é Deus
Em Supreme: The Return #6, de 2011, Alan Moore coloca o herói Supremo diante de sósias de criações kirbyanas até chegar a uma imensa cabeça flutuante fumando um charuto. Herói e cabeção discutem a origem das ideias: "Pode ser [que venham] do Psicoverso, da Zona Cognitiva, do que for. Eu chamo de 'meu lar'". Em Fantastic Four #511, de 2004, o Quarteto Fantástico chega ao céu, abre uma porta e encontra... um senhor de cabelos brancos desenhando numa prancheta. "O que vocês veem é o que eu lhes sou", o desenhista diz. "É isso que as minhas criações fazem. Elas encontram o humano em Deus."