No final do capítulo de estreia de Spy x Family, o agente Twilight dorme no sofá após passar por perrengues envolvendo o sequestro de sua nova filha, a garotinha Anya. Aproveitando o cansaço de seu pai adotivo e sua falta de afeto por uma vida abandonada em orfanatos, a garota se enfiou no meio dos braços do protagonista e ali ficou um tempo aproveitando o máximo de contato que dava. Se por um lado a cena foi feita na intenção de demonstrar o nascimento dos laços de paternidade, algumas pessoas se incomodaram com a cena e houve até quem visse maldade com um adulto deitando inocentemente ao lado da filha pequena.
Ter um incômodo com relações afetuosas de pai e filha em um anime ou mangá é mais comum do que você imagina, e isso pode estar relacionado a uma experiência traumática que a comunidade otaku passou em meados da última década, com o sucesso mundial da obra Usagi Drop, de Yumi Unita. A estreia do anime em 2011 foi uma sensação em sua temporada, fazendo o público cair nas graças daquela história repleta de drama e lições de vida, mas quem ousou prosseguir com a versão em quadrinhos acabou esbarrando em um final bastante controverso.
A premissa de Usagi Drop não é muito diferente de um filme dramático, inclusive ganhou uma adaptação com atores de carne e osso. A trama começa quando Daikichi, um rapaz de 30 anos, descobre no dia do enterro de seu avô que o patriarca teve uma filha fora do casamento, uma garotinha de 6 anos chamada Rin. Com ela sendo rejeitada por toda a família, Daikichi se sente comovido e passa a criar a garota como se fosse sua própria filha. Usagi Drop é um drama sobre paternidade, mostrando um rapaz caindo de paraquedas na função de pai para uma criança bastante madura para sua idade, e é aquele tipo clássico de história na qual o adulto aprende com a criança e vice-versa.
Acompanhar fóruns e discussões nas redes sociais na época da estreia do anime era encontrar muitos relatos emocionados com a doçura da produção. Usagi Drop conseguia passar em seus episódios lições sobre afeto e responsabilidade, fazendo com que a obra fosse bastante recomendada pelos influenciadores da época. Infelizmente o anime teve apenas 11 episódios lançados e não houve movimentação no estúdio Production I.G (de Fena: Pirate Princess) para continuar a história, ou seja, quem quisesse descobrir o desfecho precisou ir atrás do mangá, por sorte lançado por completo no Brasil pela NewPOP Editora. O final, no entanto, mostrou que talvez o estúdio tenha tomado a melhor decisão possível ao não animar novos episódios, tudo por causa de uma guinada complicada na trama.
Após muito mostrar Daikichi criando e educando Rin em meio a tantas adversidades, a autora achou interessante dar um salto de 10 anos na história. A garota, agora uma adolescente de 16 anos, começa a lidar com sentimentos conflitantes em seu coração, afinal o carinho que sente por seu pai de criação parece um pouco mais profundo do que o normal. A garota até tem um par romântico na trama, mas ele é rapidamente descartado para que o verdadeiro casal final fosse armado pela autora. É revelado que, na verdade, Rin não é filha de sangue do avô de Daikichi, e ambos vão se aproximando e até que, no final do mangá, a relação amorosa entre pai de criação e filha é oficializada quando Rin completa 18 anos de idade.
Por mais que Yumi Unita tenha tomado cuidados para não colocar em Usagi Drop algum tabu muito grande, como esperar a garota entrar na maioridade e também fazer com que ela não tivesse laços sanguíneos com sua paixão, parte do público não aceitou tão bem assim a história de um cara se relacionando com uma garota criada como uma filha por ele. Usagi Drop foi considerado um cavalo de Tróia pela comunidade otaka, chegando de mansinho como se fosse um drama sobre paternidade e entregando no final uma relação amorosa não muito unânime. O baque foi tamanho que a série se tornou uma referência para histórias amorosas com surpresas desagradáveis no fim, se tornando bastante comum o seguinte questionamento em fóruns: “o anime XXX vira Usagi Drop em algum momento?”.
Exemplos disso não faltam. Em abril de 2021 estreou o anime Higehiro, um título simplificado para o longo nome original "Após tomar um fora, me barbeei e trouxe para casa uma colegial que fugiu de casa". A premissa da série já está no título autoexplicativo e Higehiro mostra a relação entre Yoshida, um assalariado de 26 anos, e a adolescente Sayu, de 16, que passa a morar em sua casa. Na época da estreia, um post comentando o anime dentro do site MyAnimeList acolheu um debate de pessoas muito preocupadas com a possibilidade de Higehiro se tornar um Usagi Drop, a ponto de procurarem pessoas que tivessem lido a história original. A resposta definitiva só veio meses depois, com o lançamento do volume final da série de livros no Japão: a trama se encerra de forma aberta, mas dá a entender que pode rolar algo após a garota entrar na maioridade.
Algo parecido aconteceu com o anime If it's for my daughter, I'd even defeat a Demon Lord (2019). Ambientado em um cenário ao estilo de RPG medieval, o protagonista Dale encontra uma garotinha chamada Latina. Mesmo a garota sendo amaldiçoada, Dale decide criá-la, e ela passa a ser uma guerreira de suporte de seu pai de criação. O anime teve apenas uma temporada de 12 episódios, terminando antes do desdobramento controverso: as capas de volumes mais recentes da light novel original mostram Latina vestida de noiva em um casamento com seu pai de criação.
Embora tenha viralizado nas redes sociais uma discussão insinuando um possível envolvimento futuro entre Twilight/Loid e a garota Anya de Spy x Family, isso é apenas fruto de delírio e desconhecimento de mentes desocupadas. Além da sinopse da produção já indicar que será formada ali uma família inteira, sem qualquer brecha para um Usagi Drop da vida, a abertura do anime já deixa claro que o agente especial terá como par romântico na série a assassina Yor Briar, uma adulta.
Entretanto, há outro anime na atual temporada que incentiva esse nosso pé atrás a respeito dos rumos de uma trama. Em Deaimon temos como protagonista o rapaz de Nagomu, de uns 30 anos, herdeiro de uma loja de doces tradicional que abandonou tudo para se tornar músico. Alguns anos se passam e sua carreira vai de mal a pior, então ele é convocado para voltar ao negócio familiar para ajudar na empresa. Ele retorna ao lar achando que cumprirá sua tarefa como herdeiro, mas lá ele encontra a garota Itsuka, de 10 anos de idade. Ela foi "adotada" por seus pais após um passado conturbado e agora ela é a herdeira natural da empresa, e os dois vão ter que colocar as diferenças de lado para cuidar da loja de doces.
Até aí tudo bem, mas já no primeiro episódio alguns diálogos trazem memórias de guerra para quem conheceu Usagi Drop: a mãe de Nagomu explica que ela e seu marido são muito velhos, então a relação com Itsuka é como se fosse de avós e netinha, e que o protagonista precisa se aproximar da garota e ser uma… figura paterna. O mangá ainda está em publicação no Japão, então talvez não tenhamos uma resposta ainda de como será essa relação entre os personagens.
Talvez o maior problema causado por essas relações parecidas com séries ao estilo Usagi Drop é como elas nos enganam a longo prazo. Quando damos de cara com um anime cujos temas nos desagradam, o normal é apenas abandonar a série e seguir com o baile, mas como lidar com uma série que beira a propaganda enganosa? Por mais que nenhum dos exemplos citados na matéria envolvem relacionamentos amorosos/sexuais com menores de idade ou com parentes com laços sanguíneos, há um certo estranhamento por parte da sociedade com relações entre pessoas que em algum momento tiveram relação paternal.
No fim, o nosso medo acaba sendo entrar de cabeça na trama, se encantar pelos personagens para, só depois, descobrir que se trata de mais uma história de casal formado por pai e filha de criação.
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Onde assistir
Todas as produções citadas nessa matéria estão disponíveis na Crunchyroll, exceto Usagi Drop. Caso queira conferir de curiosidade alguma produção dessa série é possível ver o filme live action no catálogo do Prime Video (com o título Bunny Drop) e ler o mangá publicado pela NewPOP Editora.
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