Quando Keanu Reeves definiu o novo Matrix Resurrections, em entrevista antes do lançamento do filme, como “um filme alegre” e “uma história de amor” entre Neo e Trinity (Carrie-Anne Moss), muita gente ficou, digamos assim, desconfiada - inclusive nas redes sociais aqui do Omelete. A trilogia revolucionária dos anos 1990/2000, por um motivo ou outro, nunca é lembrada como uma história de amor, ou como uma narrativa, em última instância, esperançosa.
Ao invés disso, fãs se apegaram a outros elementos dela através dos anos: à adrenalina, à visão distópica do futuro trazida pelas Wachowski, até às correntes filosóficas que os filmes trazem, apontando para a desconstrução do sentido e da realidade no mundo contemporâneo. O que frequentemente se perde nessas discussões, no entanto, é como Matrix nunca se permite encarar essa distopia, essa desconstrução, com exaspero ou niilismo. Ao invés disso, a saga procura sempre contrapor essa visão com idealismo.
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A crúcis do primeiro Matrix, de fato, já era a história de amor entre Neo e Trinity. No clímax do filme, ela confessa para um Neo desacordado uma profecia feita pelo Oráculo, prevendo que ela se apaixonaria pelo Escolhido. “Veja, então você não pode estar morto, porque eu te amo”, diz Trinity antes de beijá-lo. E é o beijo da sua amada, como o do príncipe na Bela Adormecida, que faz Neo levantar-se na Matrix após ser baleado pelo agente Smith (Hugo Weaving).
Aqui, através de sua história de amor, a saga revela a sua temática mais importante, propondo que a escolha e a crença são os poderes humanos quintessenciais, e que eles são capazes sim de alterar a própria realidade. No momento em que Trinity escolhe amar Neo (porque nós só amamos alguém, de fato, quando escolhemos amar, escolhemos não fugir do amor, nos entregar a ele), Neo escolhe acreditar, finalmente, que as leis da física, os limites de sua força, a própria morte, tudo isso é uma ilusão - e, assim, ele de fato se torna o Escolhido.
É uma relação de causalidade complexa, alguns diriam até paradoxal. Neo sempre foi o Escolhido, e Trinity sempre esteve destinada a amá-lo, ou foi o amor de Trinity que o tornou quem ele é, pela própria virtude de fazê-lo escolher a vida, se agarrar a ela com todo o poder de sua crença? Cada uma das sequências de Matrix até hoje digladia com essa questão, mesmo porque ela encapsula muito do conflito discursivo que existe entre os fãs de Matrix no mundo real.
Para alguns desses fãs, encerrados em uma concepção de heroísmo masculino tradicional, é detrimental para o mito de Neo que ele seja definido, empoderado, salvo por sua relação com Trinity, pela força do amor entre os dois. Não combina com o estereótipo (frágil e egoísta, diga-se de passagem) do herói predestinado que - mesmo quando tem um amor - salva o mundo sozinho. Mas, como costumam fazer com outras leituras semelhantemente regressivas ou conservadoras de suas obras, as Wachowski repetidamente desconstruíram essa interpretação durante a saga.
Em Reloaded, por exemplo, é mais uma vez o amor de Neo e Trinity que protagoniza o clímax do filme, quando o personagem de Reeves escolhe salvar a vida da amada ao invés de aceitar o trato oferecido pelo Arquiteto (Helmut Bakaitis) e garantir a sobrevivência de um grupo de humanos no mundo real. Essa é a escolha que vira o jogo e provoca o Revolutions do título do terceiro filme, a criação de uma nova Matrix, de uma nova dinâmica entre humanos e máquinas, de essencialmente um novo mundo.
Isso sem nem contar que, em um ato que consagra o texto de Matrix sobre o poder salvador do amor, Neo coloca a mão dentro do peito de Trinity e toca o seu coração - literalmente - para fazê-lo voltar a bater. E, no momento climático de seu confronto final com o agente Smith, o protagonista contrapõe o discurso niilista do vilão (que define o amor como “uma construção temporária da mente humana para tentar justificar uma existência sem significado ou propósito”) com uma simplicidade brilhante: ele diz que continua lutando porque “escolhe lutar”.
Resurrections reedita essa ideia de forma geniosa. O filme martela, em vários pontos diferentes, o quanto as escolhas apresentadas aos personagens não são realmente escolhas - não porque eles estejam predestinados a optar por isso ou aquilo, mas porque simplesmente é impossível escolher outra coisa que não seja… o amor. Afinal, é por causa de seu amor por Trinity que Neo entende que há algo de errado em sua vida confortável dentro da Matrix, e é por causa dela que ele escolhe a pílula vermelha novamente, libertando-se pela segunda vez.
Não só aí, mas a cada bifurcação de trama, a cada grande pulo de fé que nos pede para dar com ele, Matrix Resurrections pergunta: “Como esses personagens poderiam escolher outra coisa que não lutar pelos seus amores?”. O filme entende a épica batalha pela criação de um mundo novo, despido do cinismo e da uniformidade dos Smith’s e Analistas de plantão (uma luta que existe no filme e aqui, no mundo real), como uma que só pode ser vencida através e por causa do amor - e faz de Neo e Trinity, perpetuamente buscando motivos para acreditar um no outro, os avatares perfeitos desse amor que é o nosso superpoder.
Brega, talvez, mas as Wachowski nunca foram de fugir de uma boa breguice. E quanto mais longe a saga vai, mais difícil fica negar sua verdadeira natureza, não importa a quem isso possa desagradar.