Com o poder de gerar uma cisão de opiniões em sua habilidade de fundir política e romantismo num formato de thriller regado a adrenalina, Dheepan – O Refúgio, filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes, em maio, tem testado seu poder de comunicabilidade com as plateias na 39ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo antes de entrar definitivamente em cartaz no país, no dia 29 de outubro. E o teste vem sendo dos mais eficientes: salas lotadas, debates acalorados, discussões sobre forma e conteúdo. Era tudo o que seu realizador, o francês Jacques Audiard, esperava para a carreira do longa-metragem, a love story entre dois dissidentes da Guerra Civil do Sri Lanka que encontram uma realidade selvagem também em Paris.
Leia a crítica de Dheepan - O Refúgio
“Cerca de 90% de tudo o que você verá na tela de Dheepan não estava no nosso script, porque eu mudava tudo a cada manhã, sempre que conversava com os atores, via intérprete, buscando o frescor do improviso e da interação, pois o amor é uma força que não se pode engessar”, explicou Audiard ao Omelete em Cannes. A conversa rolou dias antes de conquistar a maior honraria do festival francês: a Palma dourada, à qual ele nunca foi um dos favoritos, tendo impressionado o júri presidido pelos irmãos Joel e Ethan Coen por seu humanismo. “Foi uma honra ainda mais comovente saber que fui julgado por artistas como eles”, completou o diretor em papo após a vitória.
Encher cinemas é uma tarefa que Audiard exercita com facilidade. Em 2005, 1,2 milhão de franceses pagaram ingressos para chorar com De Tanto Bater, Meu Coração Parou (2005), refilmagem de Os Dois Mundos de Jimmy (1978), de James Toback, que ele dirigiu com Romain Duris. Depois emplacou um blockbuster carcerário laureado com o Grande Prêmio do Júri em Cannes e indicado ao Oscar de filme estrangeiro: O Profeta, visto por 1,3 milhão de espectadores na França em 2009. Na sequência, ele filmou Ferrugem e Osso (2012), cuja bilheteria em seu país de origem beirou 1,8 milhão de ingressos vendidos à luz do carisma de Marion Cotillard. Mas em Dheepan, sua opção foi em rostos desconhecidos. “Queria fazer um filme francês falado em tâmil, uma das línguas do Sri Lanka, cujo conflito armado me atraiu”, disse o diretor.
Idealizado enquanto Audiard caminhava na maratona de lançamento de O Profeta seis anos atrás, Dheepan – O Refúgio tem como protagonista Jesuthasan Antonythasan, é um escritor que, dos 16 aos 19 anos, integrou um movimento militante no Sri Lanka: os Tigres Tâmis. No longa-metragem, Antonythasan interpreta Dheepan, um soldado com mais de uma década de mortes nas costas que decide virar as costas para os movimentos armados de seu país e tentar a sorte na Europa. Por um acordo politico ilegal, ele precisa levar consigo a menina Illayaal (Claudine Vinasithamby, que tinha 9 anos durante as filmagens e zero experiência em atuação) e a jovem Yalini (a beldade indiana Kalieaswari Srinivasan). A tarefa de Dheepan é encenar como se elas fossem sua filha e sua mulher e cuidar de ambas, para evitar problemas com o Departamento de Imigração. Ele aceita e inicia uma vida com as duas – sem muitos laços de afeto – na França, vendendo bugigangas pelas ruas até assumir um serviço de zelador em um conjunto habitacional assolado pelo tráfico de drogas. Aí, o bicho pega.
“As pessoas ficam muito surpresas com a violência no filme, mas não é o aspecto que me norteia. Ela está ali porque eu falo de um contexto violento no qual três pessoas vão recomeçar suas vidas. E trata-se de três pessoas em fuga de uma tragédia. E essa parte está ali porque, a partir dela, eu posso falar sobre a nação de onde eu venho, a França, a partir do distanciamento do olhar estrangeiro”, explica Audiard. “Há, logo na abertura, um olhar muito sintético sobre o conflito dos Tigres Tâmis, mas nada político pois eu não tenho propriedade para falar disso. Aliás, é um conflito que o cinema mal falou. Vi um único bom filme sobre o tema e era uma produção do Sri Lanka mesmo. Eu parti desse registro e de outras pesquisas para construir algo que fosse além do que se passa lá. A guerra civil lá entra em Dheepan mais como um papel de parede. O que me interessava era o amor que brota entre três pessoas bem diferentes obrigadas a se tolerar em uma terra estranha, de língua estranha. Eu parti deste tema e não da guerra do Sri Lanka. Parti de lá porque queria evitar uma das colônia francesas da Ásia. Não queria vínculos, familiaridades. Queria fazer descobertas”.
Com um formato narrativo próximo ao de Cidade de Deus (2002), mas com cenas de ação de colocar qualquer thriller com Stallone no bolso em termos de virtuosismo nas perseguições e tiroteios, Dheepan – O Refúgio subverte uma obsessão sociológica do cinema que é retratar o pobre excluído (sobretudo o expatriado) como vítima indefesa do sistema. Aqui, Dheepan não é um cordeirinho manso: por baixo de sua postura servil das primeiras seqüências, reside um bárbaro com litros de sangue derramado nas costas, pronto a matar de novo para proteger os seus. Segundo um dos jurados de Cannes, o ator Jake Gyllenhaal, a Palma foi dada a Audiard por ele alimentar a crença do cinema na esperança. “É uma história de três estranhos que viram uma família aprendendo a se amar apesar dos reveses de um país estranho”, disse Gyllenhaal na Croisette.
Segundo Audiard, essa aposta na harmonia entre corações acossados pela brutalidade exigiu um tratamento estético mais silencioso. “Na hora da montagem, o filme ia rejeitando toda a trilha sonora que eu planejava. A música não cabia de maneira onipresente naquele mundo: seus ruídos precisavam ecoar mais alto. A trilha vai no início e no fim. O resto é a dor e os remendos de amor”, diz o cineasta, cujo apreço maior na hora de filmar é dar voz a personagens desvalidos que caminham para uma redenção possível. “Os fracassados oferecem à dramaturgia um caminho mais longo e complexo para explorar a emoção, pois com eles eu vou de A a Z nos sentimentos”.